NAS MONTANHAS GELADAS DE VENTO BRAVO, ONDE O VENTO CANTAVA CANÇÕES ANTIGAS ENTRE AS PEDRAS E OS PINHEIROS TOCAVAM O CÉU COM SEUS GALHOS, VIVIA UMA CRIATURA MUITO PECULIAR: UM HOMEM COM DUAS CABEÇAS.

SEU CORPO ERA ALTO COMO UM PINHEIRO E FORTE COMO UMA ROCHA. MAS O QUE CHAMAVA MESMO A ATENÇÃO ERA SUA CABEÇA DUPLA — UMA À ESQUERDA, COM OLHOS SERENOS E VOZ FIRME; E OUTRA À DIREITA, COM OLHOS INQUIETOS E UM SORRISO TORTO, SEMPRE PRONTA PARA ENGANAR. UMA CABEÇA SÓ DIZIA A VERDADE. A OUTRA, SÓ MENTIA. E NUNCA, JAMAIS, REVELAVAM QUAL ERA QUAL.

CHAMAVAM-NO DE O GUARDIÃO DAS MONTANHAS.

DIZIA A LENDA QUE AS CRIANÇAS QUE SE PERDIAM NA TRILHA DA NÉVOA, ENTRE AS PEDRAS E OS VENTOS, ACABAVAM DIANTE DELE, E SÓ PODERIAM VOLTAR PARA CASA SE FIZESSEM A PERGUNTA CERTA. NÃO BASTAVA CORAGEM — ERA PRECISO INTELIGÊNCIA.

UM DIA, TRÊS CRIANÇAS DA VILA DE PEDRA CHUVA SE AFASTARAM DEMAIS ENQUANTO COLHIAM FRUTAS SILVESTRES: LINA, A MAIS VELHA, SEMPRE CURIOSA; TOMÉ, QUE ADORAVA FAZER PERGUNTAS ESQUISITAS; E ANINHA, PEQUENA E ESPERTA COMO UM ESQUILO.

A NÉVOA DESCEU DE REPENTE, COMO UM COBERTOR DE ALGODÃO. QUANDO PERCEBERAM, ESTAVAM PERDIDAS. A FLORESTA HAVIA MUDADO DE CARA, E TUDO PARECIA IGUAL.

— E AGORA? — PERGUNTOU TOMÉ, COM OS OLHOS ARREGALADOS.

LINA APONTOU PARA UMA SOMBRA ALTA ENTRE OS PINHEIROS. ERA ELE. O GUARDIÃO.

— QUEM OUSA PISAR NOS CAMINHOS ESCONDIDOS DA MONTANHA? — DISSE A CABEÇA DA ESQUERDA.

— CRIANÇAS TOLAS QUE VÃO SE PERDER PARA SEMPRE — ZOMBOU A CABEÇA DA DIREITA.

— SOMOS SÓ CRIANÇAS QUERENDO VOLTAR PRA CASA — DISSE LINA, COM VOZ FIRME.

— ENTÃO PERGUNTEM — DISSE UMA CABEÇA.

— E ESCOLHAM BEM — DISSE A OUTRA.

ANINHA SUSSURROU PARA OS IRMÃOS:

— LEMBREI DA HISTÓRIA QUE O VOVÔ CONTOU... UMA PERGUNTA SÓ, PARA UMA CABEÇA SÓ. E TEM QUE SER INTELIGENTE.

TOMÉ PENSOU, DEPOIS SORRIU:

— JÁ SEI! VOU PERGUNTAR PARA UMA CABEÇA: “SE EU PERGUNTASSE À OUTRA CABEÇA QUAL É O CAMINHO CERTO PARA CASA, O QUE ELA DIRIA?”

LINA E ANINHA ARREGALARAM OS OLHOS. ERA ISSO!

TOMÉ OLHOU A CABEÇA DA DIREITA E FEZ A PERGUNTA.

A CABEÇA COÇOU O QUEIXO E APONTOU PARA O CAMINHO DA ESQUERDA.

— ENTÃO VAMOS PARA A DIREITA — DISSE TOMÉ.

E FORAM.

O VENTO SOPROU MAIS SUAVE. A NÉVOA COMEÇOU A SE ERGUER. LOGO RECONHECERAM A TRILHA DA VILA.

— COMO VOCÊ SABIA? — PERGUNTOU ANINHA.

— SE EU PERGUNTO PARA UMA CABEÇA O QUE A OUTRA DIRIA, E SIGO O CONTRÁRIO, ESTAREI CERTO — EXPLICOU TOMÉ. — PORQUE SE PERGUNTEI PARA A QUE FALA A VERDADE, ELA VAI DIZER A MENTIRA DA OUTRA. E SE PERGUNTEI PARA A QUE MENTE, ELA VAI MENTIR SOBRE O QUE A OUTRA DIRIA.

LINA SORRIU, IMPRESSIONADA.

— ESPERTO COMO UM VELHO SÁBIO!

MAS A AVENTURA DOS TRÊS NÃO ACABOU ALI.

QUANDO CHEGARAM À VILA, CORRERAM PARA CONTAR AOS ADULTOS O QUE HAVIA ACONTECIDO. NINGUÉM DUVIDOU, POIS, AS LENDAS SOBRE O GUARDIÃO DAS MONTANHAS ERAM ANTIGAS E RESPEITADAS. DONA MARISTELA, A ANCIÃ MAIS VELHA DA VILA, CHAMOU OS TRÊS PARA UM CHÁ DE ERVAS E PEDIU QUE CONTASSEM CADA DETALHE.

— VOCÊS DEVEM VOLTAR LÁ UM DIA — DISSE ELA, COM OS OLHOS ESTREITOS. — O GUARDIÃO APARECE PARA OS QUE TÊM UMA MISSÃO.

ANOS SE PASSARAM, E AS CRIANÇAS CRESCERAM. LINA TORNOU-SE UMA JOVEM ESTUDIOSA, FASCINADA POR MAPAS E LÍNGUAS ANTIGAS. TOMÉ ERA AGORA UM INVENTOR, CRIAVA COISAS ESTRANHAS COM RODAS E FUMAÇA. E ANINHA, EMBORA CONTINUASSE PEQUENA PARA SUA IDADE, TINHA UM ESPÍRITO AVENTUREIRO E CORAÇÃO VALENTE.

FOI NUMA NOITE SILENCIOSA, SOB UMA LUA AZULADA E CHEIA, QUE LINA SONHOU COM O GUARDIÃO. ELE ESTAVA CERCADO DE LIVROS ABERTOS, E AS CABEÇAS FALAVAM AO MESMO TEMPO:

— O TEMPO ESTÁ SE ESGOTANDO. AS TRILHAS MUDARÃO PARA SEMPRE.

LINA ACORDOU COM A SENSAÇÃO ESTRANHA DE QUE PRECISAVA VOLTAR À MONTANHA. REUNIU TOMÉ E ANINHA, QUE TAMBÉM HAVIAM TIDO SONHOS PARECIDOS. PERCEBERAM QUE AQUILO NÃO ERA COINCIDÊNCIA. ALGO ESTAVA PRESTES A ACONTECER.

PREPARARAM MOCHILAS COM MANTIMENTOS, COBERTORES, FERRAMENTAS E MAPAS ANTIGOS QUE LINA ESTUDAVA HÁ TEMPOS. PARTIRAM AO AMANHECER, QUANDO A VILA AINDA DORMIA.

A CAMINHADA PELAS TRILHAS FOI MAIS LONGA DO QUE LEMBRAVAM. A FLORESTA ESTAVA DIFERENTE: O CANTO DOS PÁSSAROS SOAVA ESTRANHO, E HAVIA MARCAS NO CHÃO COMO SE CRIATURAS GIGANTES TIVESSEM PASSADO POR ALI. AS ÁRVORES PARECIAM OBSERVÁ-LOS. ANINHA, SEMPRE ATENTA, NOTAVA QUE CERTAS PEDRAS BRILHAVAM EM AZUL QUANDO PASSAVAM POR ELAS.

FINALMENTE, CHEGARAM À CLAREIRA ONDE HAVIAM ENCONTRADO O GUARDIÃO PELA PRIMEIRA VEZ. A NÉVOA SURGIU COMO POR ENCANTO, ESPESSA E FRIA, E LÁ ESTAVA ELE. NÃO HAVIA MUDADO. AS DUAS CABEÇAS OS OLHARAM COM UM MISTO DE SURPRESA E SATISFAÇÃO.

— ESTAVAM DEMORANDO — DISSE A CABEÇA DA ESQUERDA.

— VIERAM PARA PERDER-SE DE NOVO? — ZOMBOU A DA DIREITA.

TOMÉ NÃO PERDEU TEMPO:

— POR QUE SONHAMOS COM VOCÊ?

AS CABEÇAS SE ENTREOLHARAM. PELA PRIMEIRA VEZ, SILENCIARAM.

— PORQUE O MUNDO ESTÁ MUDANDO — DISSE A DA ESQUERDA.

— PORQUE O MUNDO VAI ACABAR — DISSE A DA DIREITA.

LINA FRANZIU O CENHO.

— O QUE ESTÁ ACONTECENDO?

— AS TRILHAS DA VERDADE ESTÃO SE FECHANDO — DISSE UMA.

— E AS MENTIRAS VÃO DOMINAR TUDO — COMPLETOU A OUTRA.

O GUARDIÃO AFASTOU-SE PARA O LADO, REVELANDO UMA CAVERNA QUE NÃO ESTAVA ALI ANTES. UMA LUZ SUAVE SAÍA DE DENTRO DELA, PULSANDO COMO UM CORAÇÃO.

— VOCÊS DEVEM ENTRAR. MAS APENAS UM PODE ESCOLHER O CAMINHO. OS OUTROS DOIS DEVEM CONFIAR.

ERA UM DESAFIO.

OS TRÊS SE ENTREOLHARAM. ANINHA, COM SUA CORAGEM, DEU UM PASSO À FRENTE.

— EU ESCOLHO. VOCÊS CONFIAM EM MIM?

TOMÉ E LINA ASSENTIRAM. ENTRARAM NA CAVERNA.

LÁ DENTRO, O TEMPO PARECIA DISTORCIDO. AS PAREDES TINHAM DESENHOS QUE SE MEXIAM SOZINHOS, CONTANDO HISTÓRIAS ANTIGAS: BATALHAS ENTRE SABEDORIA E ENGANO, ENTRE CONHECIMENTO E ESQUECIMENTO. EM DETERMINADO PONTO, A CAVERNA SE DIVIDIA EM DOIS CAMINHOS.

— UM LEVA AO FIM. O OUTRO, AO FUTURO — DISSE UMA VOZ QUE VINHA DAS PEDRAS.

ANINHA PENSOU. LEMBROU DA DICA DE TOMÉ, DA PERGUNTA CERTA.

ELA SE VIROU PARA AS PAREDES E PERGUNTOU:

— SE EU PERGUNTASSE AO OUTRO CAMINHO PARA ONDE ELE LEVA, O QUE ELE DIRIA?

A VOZ RESPONDEU:

— ELE DIRIA QUE LEVA AO FUTURO.

ANINHA SORRIU.

— ENTÃO VAMOS PELO OUTRO.

CAMINHARAM POR UM TEMPO QUE NINGUÉM CONSEGUIA CONTAR. QUANDO SAÍRAM DA CAVERNA, ESTAVAM EM UM NÍVEL ACIMA DAS NUVENS. ALI, O AR ERA CRISTALINO, E AO CENTRO HAVIA UMA PEDRA AZULADA COM UMA INSCRIÇÃO: "O QUE VOCÊ APRENDE HOJE PROTEGE O MUNDO AMANHÃ."

LINA TOCOU A PEDRA. INSTANTANEAMENTE, O CONHECIMENTO DOS GUARDIÕES ANTIGOS PASSOU PARA ELES. SABIAM AGORA COMO LER AS NUVENS, COMO OUVIR A TERRA, COMO ENSINAR OS OUTROS A DISTINGUIR ENTRE O QUE É REAL E O QUE É ILUSÃO.

VOLTARAM PARA A VILA NÃO COMO CRIANÇAS, MAS COMO OS NOVOS GUARDIÕES DO SABER.

E NAS MONTANHAS, O HOMEM DE DUAS CABEÇAS CONTINUOU ALI, ESPERANDO PELOS PRÓXIMOS QUE OUSASSEM PERGUNTAR.