NA PEQUENA VILA DO IPÊ ROXO, ONDE AS ÁRVORES FLORESCIAM COMO SE TIVESSEM ENGOLIDO O CÉU AO ENTARDECER, VIVIA UMA MENINA CHAMADA IMANI. MAS… ESPERE! NÃO, NÃO ERA UMA MENINA COMO AS OUTRAS. PELO MENOS, NÃO DEPOIS DE CERTA NOITE.

ATÉ OS SEUS DEZ ANOS, IMANI ERA UMA CRIANÇA NORMAL: GOSTAVA DE BRINCAR DE PEGA-PEGA, SUBIA NOS GALHOS MAIS ALTOS DAS ÁRVORES E FAZIA BOLINHOS DE BARRO COM A AVÓ, DONA GERTRUDES, QUE DIZIA QUE "TODA BOA COZINHEIRA COMEÇA PELO BARRO". MAS, NUMA NOITE MUITO, MUITO ESQUISITA, IMANI DESCOBRIU SEU VERDADEIRO PODER.

FOI NUMA SEXTA-FEIRA, DIA DE FEIRA NA VILA, QUE TUDO COMEÇOU.

— IMANI, VÁ COMPRAR DOIS QUILOS DE SAL E MAIS UM QUILO DE FEIJÃO — PEDIU DONA GERTRUDES, ENTREGANDO-LHE UM SAQUINHO DE PANO E ALGUMAS MOEDAS.

IMANI SAIU SALTITANDO, MAS NO CAMINHO VIU ALGO QUE GELOU ATÉ O ÚLTIMO FIO DO SEU CABELO: O SEU BONIFÁCIO, O AÇOUGUEIRO DA VILA, ESTAVA CHUTANDO UMA POBRE GALINHA QUE ESCAPARA DO GALINHEIRO.

— VOLTA AQUI, DESGRAÇA PENOSA! — GRITAVA ELE, ENQUANTO LEVANTAVA UMA NUVEM DE PENAS.

IMANI NÃO GOSTOU DAQUILO. ALIÁS, DETESTOU. COMO É QUE ALGUÉM PODIA MALTRATAR ASSIM UMA CRIATURA INOCENTE?

FOI ENTÃO QUE, DO NADA, UMA COISA ACONTECEU.

NO MEIO DA RUA DE TERRA BATIDA, O CHÃO PARECEU VIBRAR. O AR FICOU QUENTE, MUITO QUENTE, COMO SE O VERÃO TIVESSE SIDO ESPREMIDO DENTRO DE UM FORNO. E, BEM DIANTE DOS OLHOS DE IMANI, UMA BOLA DE FOGO SE ERGUEU, GIRANDO NO AR COMO UMA ASSOMBRAÇÃO!

— O QUE É ISSO?! — BERROU SEU BONIFÁCIO, LARGANDO A GALINHA E CORRENDO PARA DENTRO DO AÇOUGUE.

A BOLA DE FOGO PAIROU NO AR POR UM SEGUNDO… E, DE REPENTE, PUFF! DESAPARECEU, DEIXANDO APENAS UM FIOZINHO DE FUMAÇA NO AR. A GALINHA, FELIZ DA VIDA, ATRAVESSOU A RUA E SUMIU NUM MATAGAL.

IMANI ARREGALOU OS OLHOS, OLHOU PARA AS PRÓPRIAS MÃOS, E SÓ ENTÃO PERCEBEU QUE ESTAVAM QUENTES, QUENTINHAS… E QUE UMA MECHA DO SEU CABELO SOLTAVA UM FIOZINHO DE FUMAÇA.

— NÃO PODE SER… — SUSSURROU.

NAQUELA NOITE, ENQUANTO DONA GERTRUDES COZINHAVA UM FEIJÃO GORDO COM LINGUIÇA, IMANI DECIDIU CONTAR O QUE TINHA VISTO.

— VÓ, HOJE EU VI UMA BOLA DE FOGO! E… ACHO QUE FUI EU QUE FIZ!

DONA GERTRUDES SOLTOU UMA GARGALHADA TÃO ALTA QUE ATÉ O CACHORRO DA VIZINHA LATIU.

— AH, MINHA NETA! ENTÃO ESTÁ NA HORA DE TE CONTAR A VERDADE!

E FOI ASSIM QUE IMANI DESCOBRIU O SEGREDO DA FAMÍLIA.

DONA GERTRUDES PEGOU UM LIVRO ANTIGO, ENCAPADO COM TECIDO FLORIDO, E COLOCOU SOBRE A MESA.

— TODAS AS MULHERES DA NOSSA FAMÍLIA, QUANDO CHEGAM NA IDADE CERTA, DESCOBREM QUE PODEM SE TRANSFORMAR NUMA BOLA DE FOGO.

IMANI ARREGALOU OS OLHOS.

— MAS… PARA QUÊ?

— PARA PROTEGER A VILA, ORA ESSA! — RESPONDEU A AVÓ, SORRINDO. — SEMPRE QUE ALGUÉM FAZ MALDADES OU NÃO CUIDA BEM DA COMUNIDADE, A GENTE VIRA BOLA DE FOGO E VAI DAR UM SUSTO.

IMANI LEMBROU DE SEU BONIFÁCIO CORRENDO COMO UMA ANTA ASSUSTADA.

— E SÓ APARECE SE A PESSOA FOR MALVADA? — PERGUNTOU.

— EXATAMENTE. GENTE DE BOM CORAÇÃO NÃO PRECISA TEMER. E MAIS: QUEM QUISER SE PROTEGER, SÓ PRECISA SER GENTIL… E GUARDAR UM POUQUINHO DE SAL NA PORTA DE CASA.

IMANI FRANZIU A TESTA.

— SAL?

— ISSO MESMO! O SAL ESPANTA A NOSSA BOLA DE FOGO, MAS SÓ QUEM É RUIM PRECISA DISSO. VOCÊ JÁ VIU NOSSA PORTA? — DONA GERTRUDES APONTOU PARA UM PRATINHO COM SAL BEM AO LADO DA ENTRADA. — AQUI, É SÓ PARA AVISAR QUE SOMOS RESPEITÁVEIS… E PARA TEMPERAR A VIDA, NÉ?

IMANI RIU. MAS, NO FUNDO, FICOU UM POUCO NERVOSA.

— VÓ… E SE EU NÃO QUISER VIRAR UMA BOLA DE FOGO?

DONA GERTRUDES DEU DE OMBROS.

— AH, MINHA NETA, NINGUÉM QUER…, MAS, ÀS VEZES, A GENTE PRECISA.

E ASSIM IMANI SOUBE DO SEU DESTINO.

NOS DIAS SEGUINTES, IMANI TENTOU FINGIR QUE NADA TINHA ACONTECIDO. IA À ESCOLA, JOGAVA PETECA COM OS AMIGOS E AJUDAVA DONA GERTRUDES NA HORTA. MAS, SEMPRE QUE VIA ALGUÉM FAZENDO ALGUMA MALDADE, SENTIA UM CALORZINHO SUBINDO PELOS PÉS.

PRIMEIRO FOI O ZECA, QUE JOGOU LIXO NA LAGOA.

PUFF! LÁ ESTAVA A BOLA DE FOGO, SOBREVOANDO A CABEÇA DELE, FAZENDO O MENINO CAIR DENTRO DA ÁGUA DE SUSTO.

DEPOIS FOI A DONA NAIR, QUE DESTRATOU O PADEIRO PORQUE O PÃO ESTAVA "MUITO MURCHO".

WHOOSH! A BOLA DE FOGO GIROU SOBRE A PADARIA, QUEIMANDO SÓ UM PEDACINHO DO TOLDO (SEM GRANDES PREJUÍZOS, É CLARO).

A VILA INTEIRA COMEÇOU A FALAR DA "ASSOMBRAÇÃO FLAMEJANTE".

— EU VI! — GRITAVA UM.

— NÃO, EU QUE VI PRIMEIRO! — DIZIA OUTRO.

MAS NINGUÉM SABIA QUE, POR TRÁS DA LENDA QUE CRESCIA, ESTAVA IMANI, UMA MENINA QUE MAL ALCANÇAVA O BALCÃO DO MERCADINHO.

COM O TEMPO, IMANI APRENDEU A CONTROLAR MELHOR SUA TRANSFORMAÇÃO. DESCOBRIU QUE SÓ PRECISAVA PENSAR BEM FORTE NUMA BOLA DE FOGO, SENTIR RAIVA DAS INJUSTIÇAS… E ZAP! LÁ ESTAVA ELA, VOANDO PELOS CÉUS, FAZENDO ACROBACIAS E SOLTANDO FAÍSCAS.

MAS ENTÃO, UM DIA, UM PROBLEMA BEM MAIOR APARECEU.

COISAS ESTRANHAS COMEÇARAM A ACONTECER NA VILA.

PRIMEIRO, AS FLORES DO IPÊ FORAM ARRANCADAS. DEPOIS, O CORETO DA PRAÇA FOI PICHADO COM TINTA VERDE-LIMÃO. POR FIM, ALGUÉM SOLTOU OS BODES DO SEU ELIAS, QUE INVADIRAM A HORTA COMUNITÁRIA E COMERAM TODAS AS CENOURAS!

— É UM CRIMINOSO! — BERRAVA SEU ELIAS, ARRANCANDO OS POUCOS FIOS DE CABELO QUE LHE RESTAVAM. — UM VÂNDALO!

IMANI FICOU INDIGNADA. QUEM FARIA UMA COISA DESSAS? ELA DECIDIU INVESTIGAR.

À NOITE, ESPEROU ATÉ QUE TODOS DORMISSEM. VESTIU SEU PIJAMA DE BOLINHAS, CALÇOU AS CHINELAS E SAIU PELA PORTA DOS FUNDOS. OLHOU PARA O CÉU ESTRELADO, FECHOU OS OLHOS E… PUFFF! VIROU UMA BOLA DE FOGO, VOANDO SILENCIOSA SOBRE A VILA.

SOBREVOOU O CORETO, PASSOU PELA HORTA DEVASTADA E, DE REPENTE, VIU UMA SOMBRA PERTO DO IPÊ.

DESCEU DEVAGAR, SEM EMITIR NENHUM SOM ALÉM DE UM DISCRETO CREPITAR. E ENTÃO VIU: UM MENINO, MAGRICELA, USANDO UM BONÉ VIRADO PARA TRÁS, SEGURANDO UM SPRAY DE TINTA!

IMANI FICOU FURIOSA.

— WHOOSH! — FEZ, SOLTANDO UMA LABAREDA.

O MENINO ARREGALOU OS OLHOS E LARGOU O SPRAY.

— SOCORROOOOO! — GRITOU, CORRENDO EM DIREÇÃO À ESTRADA.

MAS, ANTES QUE ELE SUMISSE, IMANI SE DESTRANSFORMOU E CORREU ATRÁS DELE.

— ESPERA! — GRITOU, AGARRANDO A BARRA DA CAMISETA DO MENINO.

ELE PAROU, OFEGANTE.

— POR FAVOR, NÃO ME QUEIMA!

IMANI CRUZOU OS BRAÇOS.

— POR QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO ISSO COM A VILA?

O MENINO ABAIXOU A CABEÇA.

— É QUE… EU SOU NOVO AQUI. NINGUÉM FALA COMIGO. TODO MUNDO ME IGNORA. ACHEI QUE SE EU… CAUSASSE UM POUCO, ELES IAM NOTAR.

IMANI SENTIU O CORAÇÃO AMOLECER.

— COMO VOCÊ SE CHAMA?

— TOBIAS.

IMANI DEU UM SORRISINHO.

— TOBIAS, VOCÊ NÃO PRECISA SER MALVADO PARA SER NOTADO. VEM COMIGO.

E LEVOU O MENINO ATÉ A CASA DE DONA GERTRUDES, QUE, MESMO NO MEIO DA MADRUGADA, LEVANTOU-SE, FEZ UM CHÁ DE CAMOMILA E SERVIU UM PEDAÇO DE BOLO.

— NA NOSSA VILA, QUEM QUER SER BEM-VINDO SÓ PRECISA SER GENTIL — DISSE A AVÓ.

NA MANHÃ SEGUINTE, TOBIAS FOI COM IMANI ATÉ A HORTA COMUNITÁRIA. OS DOIS AJUDARAM A REPLANTAR AS CENOURAS, PINTARAM O CORETO DE BRANCO E RECOLHERAM TODAS AS FLORES CAÍDAS DO IPÊ.

NO FIM DO DIA, A VILA INTEIRA SE REUNIU NA PRAÇA.

— VIVA TOBIAS! — GRITARAM AS CRIANÇAS.

E, PELA PRIMEIRA VEZ, ELE SORRIU.

DEPOIS DAQUELE DIA, IMANI PERCEBEU QUE NEM TODO MUNDO QUE FAZ COISA ERRADA É MALVADO. ÀS VEZES, AS PESSOAS SÓ ESTÃO PERDIDAS, OU TRISTES.

POR ISSO, PASSOU A USAR SEUS PODERES COM MAIS SABEDORIA. SÓ SE TRANSFORMAVA EM BOLA DE FOGO QUANDO A SITUAÇÃO REALMENTE PEDIA. E, MESMO ASSIM, PREFERIA CONVERSAR PRIMEIRO.

A VILA DO IPÊ ROXO FICOU MAIS UNIDA DO QUE NUNCA. TODO MUNDO PASSOU A CUIDAR MELHOR DA PRAÇA, DA HORTA, DAS ÁRVORES E ATÉ DOS GALOS QUE CANTAVAM ÀS CINCO DA MANHÃ.

MAS, SÓ POR PRECAUÇÃO, TODO MUNDO MANTEVE UM PRATINHO DE SAL NA PORTA.

— VAI QUE A BOLA DE FOGO RESOLVE APARECER, NÉ? — DIZIAM, RINDO.

E IMANI, TODA VEZ QUE PASSAVA E VIA O SAL, SOLTAVA UM RISINHO CÚMPLICE.

O TEMPO PASSOU, E A LENDA DA BOLA DE FOGO DA VILA DO IPÊ ROXO SE ESPALHOU PARA OUTRAS CIDADES, ATRAVESSOU MONTANHAS, VIROU HISTÓRIA CONTADA AO REDOR DE FOGUEIRAS E INSPIROU ATÉ UMA PEÇA DE TEATRO NA ESCOLA.

E IMANI… BEM, IMANI CONTINUOU A SER A GUARDIÃ SECRETA DA VILA, SEMPRE PRONTA PARA VOAR PELOS CÉUS, FLAMEJANTE E DETERMINADA, GARANTINDO QUE A BONDADE FOSSE SEMPRE MAIS FORTE DO QUE O MEDO.

AH, E O SEU BONIFÁCIO?

NUNCA MAIS CHUTOU UMA GALINHA.