O CÉU DE TRÓIA ESTAVA TINGIDO DE VIOLETA, COMO SE OS DEUSES, CANSADOS DA GUERRA QUE DURAVA MAIS DE UMA DÉCADA, TIVESSEM CUSPIDO SUA FÚRIA SOBRE OS MORTAIS. AS MURALHAS DE PEDRA NEGRA TREMULAVAM COM RUNAS ANTIGAS, TRAÇADAS QUANDO O MUNDO AINDA ERA JOVEM E OS HOMENS CAMINHAVAM ENTRE CRIATURAS DE CHIFRES E ASAS. ALI, NO TOPO DA MURALHA LESTE, CÁLIA SEGURAVA SEU ARCO DE OSSOS DE QUIMERA, OS OLHOS DOURADOS FIXOS NA PLANÍCIE ALÉM.

TINHA QUINZE ANOS, MAS SEU SANGUE JÁ ESTAVA MISTURADO COM O DAS DRACAENAS E DOS SÁURIOS QUE, VEZ OU OUTRA, TENTAVAM ESCALAR OS MUROS DA CIDADE. FILHA DE UMA SACERDOTISA DE HÉCATE E DE UM GUERREIRO, CÁLIA APRENDERA CEDO QUE NÃO BASTAVA SABER MANEJAR UMA ESPADA — ERA PRECISO TAMBÉM CONHECER OS NOMES SECRETOS DAS COISAS, O PODER OCULTO NOS SÍMBOLOS.

E ALI ESTAVA ELE.

O CAVALO.

NÃO UM CAVALO QUALQUER, MAS UMA CRIATURA GIGANTESCA, COM CERCA DE VINTE METROS DE ALTURA, ESCULPIDO EM MADEIRA NEGRA DE ÉBANO, AS PATAS CRAVEJADAS DE DENTES FOSSILIZADOS, E OLHOS OCOS QUE PARECIAM ABSORVER A LUZ DO CREPÚSCULO. DO INTERIOR DE SEU PEITO FECHADO, VAZAVA UMA FUMAÇA ESVERDEADA, COMO O HÁLITO DE UMA FERA ADORMECIDA.

— O QUE… é ISSO? — MURMUROU ALTEA, SUA AMIGA E IRMÃ DE ARMAS, APROXIMANDO-SE COM A LANÇA DE BRONZE MÁGICO EM PUNHO.

CÁLIA NÃO RESPONDEU. SENTIA, ATRAVÉS DAS MARCAS QUEIMADAS NA PELE — SÍMBOLOS QUE SUA MÃE TATUARA QUANDO CRIANÇA —, QUE AQUELA COISA PULSAVA. NÃO ERA APENAS UM OBJETO. TINHA... CONSCIÊNCIA.

QUANDO O CONSELHO DE TRÓIA DECIDIU, NAQUELA NOITE, ARRASTAR O CAVALO PARA DENTRO DA CIDADE COMO OFERENDA DE PAZ AOS DEUSES, CÁLIA SE MANTEVE AFASTADA, OBSERVANDO DOS BASTIÕES SUPERIORES. ENQUANTO O POVO DANÇAVA, BEBIA HIDROMEL E SE EMBRIAGAVA COM O FIM APARENTE DA GUERRA, ELA VIU AS ESTÁTUAS PROTETORAS DAS MURALHAS — OS GRIFOS DE MÁRMORE, OS LEÕES DE PEDRA — COMEÇAREM A RACHAR, COMO SE A MERA PRESENÇA DAQUELA CRIATURA ESTIVESSE QUEBRANDO OS ANTIGOS FEITIÇOS QUE PROTEGIAM TRÓIA.

NA PRAÇA CENTRAL, O CAVALO FOI POSICIONADO COM GLÓRIA, ENTRE COLUNAS CORÍNTIAS E ESTANDARTES VERMELHOS. SUA CABEÇA APONTAVA PARA O TEMPLO DE APOLO, COMO UM AVISO SILENCIOSO.

CÁLIA APERTOU O PUNHO. SUA MÃE SEMPRE LHE DISSERA QUE MONSTROS ERAM ATRAÍDOS NÃO PELA FRAQUEZA DOS HOMENS, MAS PELA SUA ARROGÂNCIA. E TRÓIA ESTAVA EMBRIAGADA DE ORGULHO.

NAQUELA NOITE, ENQUANTO TODOS DORMIAM, ELA NÃO CONSEGUIU FECHAR OS OLHOS. DO ALTO DE SUA CASA, ONDE VIVIA COM A AVÓ — UMA MAGA JÁ SENIL QUE FALAVA COM AS SOMBRAS —, ELA OUVIU O PRIMEIRO SOM: UM RANGIDO BAIXO, SEGUIDO DE UM GRUNHIDO GUTURAL QUE NÃO PARECIA SAIR DE GARGANTA HUMANA.

PEGOU IMEDIATAMENTE SEU ARCO, A ALJAVA COM FLECHAS ENVENENADAS COM SANGUE DE HIDRA, E SALTOU PELAS TELHAS ATÉ O TELHADO MAIS PRÓXIMO DA PRAÇA.

LÁ ESTAVA O CAVALO.

E ESTAVA SE ABRINDO.

MAS NÃO COMO ABRIRIA UMA PORTA OU UMA ESCOTILHA. AS TÁBUAS NEGRAS DE ÉBANO ESTAVAM SE RASGANDO COMO CARNE PODRE, REVELANDO UMA FENDA VIVA E PULSANTE, DE ONDE MÃOS COMEÇARAM A EMERGIR. NÃO ERAM SOLDADOS COMUNS.

O PRIMEIRO SER A SAIR TINHA METADE DO CORPO HUMANO E METADE SERPENTINO, COM ESCAMAS AZUIS E OLHOS VERTICAIS. ELE SOLTOU UM SILVO LONGO, CHAMANDO OUTROS. DE DENTRO DO VENTRE VIVO DA CRIATURA SAÍRAM HARPIAS, GUERREIROS COM CABEÇAS DE CÃO INFERNAL, CENTAUROS DEFORMADOS, GUERREIROS GREGOS ENCANTADOS COM MALDIÇÕES ANTIGAS, TODOS PORTANDO LÂMINAS NEGRAS COMO OBSIDIANA.

CÁLIA SEGUROU O FÔLEGO.

NÃO ERA APENAS UMA EMBOSCADA: ERA UMA INVASÃO MONSTRUOSA.

AS CRIATURAS COMEÇARAM A SE ESPALHAR PELAS RUAS SILENCIOSAS, ARROMBANDO PORTAS COM FORÇA SOBRENATURAL, MATANDO OS QUE DORMIAM, QUEIMANDO COM FOGO FÁTUO QUE NÃO PRECISAVA DE LENHA. O CÉU COMEÇOU A ESCURECER AINDA MAIS, COMO SE O PRÓPRIO HADES SUBISSE À SUPERFÍCIE.

SEM PENSAR, CÁLIA PUXOU UMA FLECHA, A PONTA EMBEBIDA NO VENENO PARALISANTE QUE ELA MESMA EXTRAÍRA DA ÚLTIMA SERPENTE DE TRÊS CABEÇAS QUE MATARA NA FLORESTA DO NORTE. MIROU NA CABEÇA DA DRACAENA MAIS PRÓXIMA E SOLTOU.

O MONSTRO ESTREMECEU, SOLTOU UM GRITO ABAFADO E TOMBOU, O CORPO SE CONTORCENDO ATÉ VIRAR POEIRA.

MAS O SOM CHAMOU A ATENÇÃO DE OUTROS.

CÁLIA CORREU, SALTANDO DE TELHADO EM TELHADO, ENQUANTO AS CRIATURAS SE ESPALHAVAM, ABRINDO AS MURALHAS PARA O EXÉRCITO OCULTO ALÉM DO RIO, QUE AGORA COMEÇAVA A ATRAVESSAR, LIDERADO POR FIGURAS ENCAPUZADAS, MONTADAS EM MANTÍCORAS VOADORAS.

ELA CHEGOU À CASA DA AVÓ, ENCONTROU A VELHA CURVADA SOBRE UM CÍRCULO DE PROTEÇÃO TRAÇADO COM SAL E CINZAS, MURMURANDO PALAVRAS NA LÍNGUA ESQUECIDA DOS TITÃS.

— VÓ! ELES ESTÃO AQUI! NÃO SÃO GREGOS… SÃO… SÃO COISAS!

A VELHA ERGUEU OS OLHOS BRANCOS E SORRIU, COMO SE JÁ SOUBESSE.

— EU SEI. EU OS VI NOS OSSOS. NÃO TEMOS PARA ONDE IR.

MAS CÁLIA NÃO ACEITOU.

PUXOU A AVÓ PELOS BRAÇOS FRÁGEIS E COLOCOU-A NUMA CARROÇA, AMARRANDO OS BOIS. DEU UM ASSOVIO AGUDO E, DAS SOMBRAS, SUA FERA COMPANHEIRA — UM LOBO ALADO DE PELO PRATEADO, PRESENTE DE UM CAÇADOR DO NORTE — SURGIU, ROSNANDO.

SALTOU SOBRE ELE, PUXANDO A AVÓ, E GALOPOU PELAS VIELAS, ESQUIVANDO-SE DE LANÇAS ARREMESSADAS, DESVIANDO DO FOGO ESPECTRAL QUE CONSUMIA OS TEMPLOS. DE UM CANTO, UMA QUIMERA AVANÇOU, MAS CÁLIA ERGUEU O ARCO E DISPAROU DUAS FLECHAS EM SEQUÊNCIA: UMA NO OLHO DA CABEÇA DE LEÃO, OUTRA NA GARGANTA DA CABEÇA DE SERPENTE. A FERA TOMBOU, ESMAGANDO PARTE DE UMA PAREDE.

— PARA OS JARDINS SUPERIORES! — GRITOU ALTEA, SURGINDO DE UMA RUA LATERAL, MONTADA EM UM UNICÓRNIO NEGRO DE OLHOS FLAMEJANTES.

CÁLIA FEZ UM GESTO E SEGUIU. AS DUAS GUERREIRAS, MONTADAS EM SUAS CRIATURAS, GALOPARAM PELAS ESCADARIAS DE PEDRA ENQUANTO ATRÁS DELAS TRÓIA RUÍA, ENGOLIDA PELO EXÉRCITO DE MONSTROS. O SOM DAS ASAS DAS HARPIAS, DOS CASCOS DAS MANTÍCORAS, DOS GRITOS DAS DRACAENAS SE MISTURAVA AO DAS CHAMAS E DOS PRÉDIOS DESABANDO.

QUANDO ALCANÇARAM O TOPO, O AR ESTAVA RAREFEITO, E A CIDADE PARECIA APENAS UMA MASSA DE FOGO E GRITOS LÁ EMBAIXO.

CÁLIA DESMONTOU, PUXANDO A AVÓ, ENQUANTO ALTEA SOLTAVA O UNICÓRNIO E OLHAVA PARA TRÁS.

— NÃO PODEMOS VENCER, CÁLIA. NEM OS NOSSOS FEITIÇOS MAIS ANTIGOS PODEM PARAR ISSO.

— EU SEI — RESPONDEU A AMIGA, APERTANDO O PUNHO AO REDOR DO ARCO. — MAS PODEMOS SOBREVIVER.

NESSE INSTANTE, O CÉU EXPLODIU EM RELÂMPAGOS VERDES, E DO CENTRO DA CIDADE, O CAVALO DE MADEIRA SE PARTIU EM MIL PEDAÇOS, COMO SE ALGO MAIOR, MUITO MAIOR, QUISESSE SAIR. DO NÚCLEO DA CRIATURA EMERGIU UMA ENTIDADE COLOSSAL: UMA FIGURA FEITA DE RAÍZES VIVAS, OLHOS DE ÂMBAR DERRETIDO E DENTES AFIADOS COMO LÂMINAS DE TITÂNIO.

— O QUE É ISSO? — SUSSURROU ALTEA, PARALISADA.

CÁLIA SENTIU O PEITO APERTAR.

— É GAIA…, MAS CORROMPIDA. É A PRÓPRIA TERRA, VINGANDO-SE DE NÓS.

O MONSTRO ERGUEU UM BRAÇO QUE PARECIA UM TRONCO ESPINHOSO E ESMAGOU A PRAÇA, DESTRUINDO OS ÚLTIMOS VESTÍGIOS DOS TEMPLOS E MURALHAS. AS CRIATURAS QUE O HAVIAM ACOMPANHADO SE AJOELHARAM, REVERENCIANDO-O COMO UM DEUS.

CÁLIA PUXOU A AVÓ PELA MÃO E FEZ SINAL PARA ALTEA.

— PARA A FLORESTA. AGORA!

AS TRÊS ATRAVESSARAM A TRILHA ESCONDIDA ENTRE AS PEDRAS, ONDE MUSGOS LUMINESCENTES INDICAVAM O CAMINHO, UM ANTIGO PORTAL DE FUGA QUE POUCOS CONHECIAM. ENQUANTO CORRIAM, CRIATURAS SAÍAM DAS ÁRVORES — ESPÍRITOS DA FLORESTA, CENTAUROS AMISTOSOS, QUE ABRIRAM CAMINHO, GUIANDO-AS ATÉ UMA CAVERNA PROTEGIDA POR RUNAS ANCESTRAIS.

QUANDO ENTRARAM, O SOM DO CAOS LÁ FORA DIMINUIU, ABAFADO PELA ESPESSURA DA PEDRA.

CÁLIA OLHOU UMA ÚLTIMA VEZ PARA TRÁS.

TRÓIA ARDIA. AS MURALHAS, O TEMPLO DE ATENA, AS PRAÇAS ONDE ELA CORRIA QUANDO CRIANÇA... TUDO CONSUMIDO.

E, AO CENTRO, A CRIATURA TITÂNICA CAMINHAVA LENTAMENTE ENTRE AS RUÍNAS, SEGUIDA POR SEU EXÉRCITO DE MONSTROS, COMO SE ESTIVESSE APENAS COMEÇANDO SUA MARCHA PARA ALÉM DE TRÓIA.

— VAMOS… — DISSE, VIRANDO-SE.

ATRAVESSARAM A CAVERNA, EMERGINDO DO OUTRO LADO DA MONTANHA, ONDE O SOL NASCIA, INDIFERENTE, TINGINDO O MUNDO DE DOURADO.

ALTEA PAROU AO LADO DE CÁLIA, SEGURANDO SUA MÃO COM FORÇA.

— E AGORA?

CÁLIA APERTOU O ARCO, O LOBO ALADO FAREJANDO O AR AO LADO DELAS.

— AGORA, SEGUIMOS.

A VELHA AVÓ, MONTADA NA CARROÇA, SOLTOU UMA RISADA FRACA.

— AS CIDADES CAEM…, MAS AS LENDAS… AH, AS LENDAS VIVEM.

CÁLIA NÃO RESPONDEU.

APENAS CAMINHOU, OS OLHOS FIXOS NO HORIZONTE, SEM OLHAR PARA TRÁS, SEM ESPERAR REDENÇÃO, SEM QUERER UM FINAL.
APENAS… CONTINUOU.

COMO FAZEM OS QUE SOBREVIVEM.

ENQUANTO CÁLIA, ALTEA E A VELHA ATRAVESSAVAM OS VALES SECOS ALÉM DA MONTANHA, ABANDONAVAM AS ÚLTIMAS CINZAS DE TRÓIA. O LOBO ALADO FAREJAVA O VENTO INQUIETO, E O CÉU, AGORA LIMPO, PARECIA ZOMBAR DO HORROR QUE CONSUMIRA A CIDADE.

MAS A CALMA ERA ILUSÓRIA.

QUANDO ALCANÇARAM UMA CLAREIRA CERCADA POR ÁRVORES PETRIFICADAS, O SOLO TREMEU, E, DO OESTE, UM GRITO AGUDO CORTOU O AR, SEGUIDO POR UMA SOMBRA ENORME. AS MONTANHAS AO LONGE ESTREMECERAM, E O PRÓPRIO HORIZONTE PARECIA SE MOVER.

— NÃO... — SUSSURROU ALTEA, MONTANDO NOVAMENTE SEU UNICÓRNIO. — NÃO PODE SER...

CÁLIA APERTOU O ARCO. LÁ, SURGINDO DO MEIO DA PLANÍCIE, A CRIATURA DE RAÍZES — O CORAÇÃO DA MALDIÇÃO DO CAVALO — AVANÇAVA, MAIS COLOSSAL DO QUE ANTES, OS OLHOS DE ÂMBAR QUEIMANDO COMO SÓIS. ATRÁS DELA, O EXÉRCITO DE HORRORES: QUIMERAS FLAMEJANTES, GRIFOS PUTREFATOS, GUERREIROS ENCANTADOS, TODOS MARCHANDO COMO UMA ONDA VIVA DE DESTRUIÇÃO.

ELES NÃO TINHAM FUGIDO. ESTAVAM SENDO CAÇADOS.

CÁLIA PUXOU A AVÓ PARA AS COSTAS DO LOBO ALADO E GRITOU PARA ALTEA:

— PARA AS COLINAS DO VÓRTICE! LÁ FICA O ÚLTIMO SANTUÁRIO!

AS DUAS DISPARARAM, O LOBO E O UNICÓRNIO CORRENDO LADO A LADO, ENQUANTO O EXÉRCITO MONSTRUOSO ESMAGAVA AS ÁRVORES FOSSILIZADAS ATRÁS DELAS. DA CRIATURA MAIOR, CIPÓS VIVOS SE ESTENDIAM, TENTANDO AGARRÁ-LAS, ENROSCANDO-SE EM PEDRAS E QUEBRANDO-AS COMO VIDRO.

CORRENDO, CÁLIA SENTIU O SÍMBOLO QUEIMADO EM SUA PELE LATEJAR. A MAGIA QUE SUA MÃE DEPOSITARA ALI AINDA PULSAVA, MAS FRACA.

APÓS HORAS DE FUGA, COM OS CASCOS DOS ANIMAIS ENSANGUENTADOS, ELAS CHEGARAM AO SOPÉ DE UM MONTE ONDE PEDRAS NEGRAS FORMAVAM UM CÍRCULO INCOMPLETO.

— É AQUI! — GRITOU CÁLIA.

MAS ANTES QUE PUDESSEM ENTRAR, UMA PAREDE DE ESPINHOS VIVOS SE ERGUEU À FRENTE, BLOQUEANDO A ENTRADA.

E ENTÃO, DAS SOMBRAS, SURGIU UMA FIGURA.

ERA UMA MULHER, DE CABELOS BRANCOS COMO NEVE SUJA, VESTIDA COM UM MANTO FEITO DE ASAS DE CORVO COSTURADAS, SEGURANDO UM CAJADO DE OSSOS TRANÇADOS.

— VOCÊS FUGIRAM BEM…, MAS NÃO O SUFICIENTE — DISSE ELA, COM A VOZ FEITA DE AREIA E VENTO.

ALTEA ERGUEU A LANÇA, MAS CÁLIA A SEGUROU.

— É UMA DAS ORACULARES... — SUSSURROU. — EU JÁ OUVI AS LENDAS…

A VELHA SE APROXIMOU, SEM MEDO.

— QUEREM ENTRAR? PAGUEM O PREÇO.

CÁLIA TIROU O MEDALHÃO QUE SUA MÃE DEIXARA ANTES DE MORRER. ENTREGOU À ORACULAR.

A MULHER SORRIU, QUEBROU O MEDALHÃO EM PÓ E FEZ UM GESTO COM O CAJADO. A PAREDE DE ESPINHOS SE ABRIU.

SEM ESPERAR, CÁLIA PUXOU A AVÓ E ALTEA E ENTROU.

O SANTUÁRIO ERA UMA CRIPTA ABERTA AO CÉU, COM PEDRAS DISPOSTAS EM ESPIRAL E UM ALTAR DE MÁRMORE VERMELHO NO CENTRO. NO AR, A MAGIA ANTIGA VIBRAVA COMO CORDAS TENSAS. ESPÍRITOS TRANSLÚCIDOS CAMINHAVAM ENTRE OS PILARES QUEBRADOS, SUSSURRANDO NOMES ESQUECIDOS.

— AQUI... — DISSE CÁLIA, OLHANDO PARA O ALTAR. — AQUI PODEMOS FAZER A CONVOCAÇÃO.

ALTEA ARREGALOU OS OLHOS.

— NÃO… VOCÊ NÃO QUER DIZER…

— SIM. É A ÚNICA CHANCE.

SEM PERDER TEMPO, CÁLIA PEGOU O PUNHAL QUE CARREGAVA NA CINTURA E, SEM HESITAR, CORTOU A PALMA DA MÃO, DEIXANDO O SANGUE PINGAR SOBRE O MÁRMORE. EM VOZ BAIXA, COMEÇOU A RECITAR OS VERSOS QUE SUA MÃE ENSINARA, QUANDO AINDA ERA CRIANÇA E BRINCAVA ENTRE OS LABIRINTOS DOS JARDINS DO TEMPLO.

O CHÃO TREMEU. O CÉU SE FECHOU COMO UM OLHO.

E ENTÃO, DO CENTRO DO ALTAR, SURGIRAM: TRÊS GIGANTES DE PEDRA VIVA, COM CABEÇAS DE TOURO, OLHOS DE FOGO AZUL E BRAÇOS FEITOS DE COLUNAS GREGAS ARRANCADAS DE RUÍNAS ANTIGAS.

OS TITÃS.

ELES HAVIAM SIDO SELADOS HÁ MILÊNIOS, MAS AGORA, LIBERTOS PELO SANGUE E PELA PALAVRA, ERGUIAM-SE NOVAMENTE.

SEM TEMPO PARA RESPIRAR, O EXÉRCITO MONSTRUOSO ALCANÇOU O SOPÉ DO MONTE.

A CRIATURA DE RAÍZES PAROU DIANTE DO SANTUÁRIO, FITANDO CÁLIA COM OLHOS SEM ALMA. ESTENDEU UM BRAÇO-CIPÓ E, DO CENTRO DE SEU PEITO, ABRIU UMA FENDA, LIBERANDO UMA TEMPESTADE DE CRIATURAS VOADORAS.

MAS OS TITÃS AVANÇARAM.

UM GOLPEOU COM O PUNHO UMA MANTICORA ALADA, ESMAGANDO-A COMO UM INSETO. OUTRO ARRANCOU ÁRVORES INTEIRAS E AS ARREMESSOU SOBRE OS MONSTROS. O TERCEIRO LANÇOU UM URRO QUE QUEBROU PEDRAS E FEZ O EXÉRCITO HESITAR.

NO MEIO DISSO, CÁLIA E ALTEA MONTARAM NOVAMENTE, LANÇANDO-SE SOBRE O CAMPO DE BATALHA, ALVEJANDO CRIATURAS, DESVIANDO DE LANÇAS ENVENENADAS, CORTANDO CABEÇAS DE HARPIAS QUE MERGULHAVAM EM PICADA.

O LOBO ALADO, COM GARRAS E PRESAS AFIADAS, ABRIA CAMINHO, ENQUANTO A AVÓ, SENTADA NA CARROÇA, RIA COMO UMA LOUCA, LANÇANDO FEITIÇOS DE CONFUSÃO QUE FAZIAM QUIMERAS SE ATACAREM ENTRE SI.

MAS A CRIATURA COLOSSAL AVANÇAVA, INDIFERENTE.

QUANDO O MAIOR DOS TITÃS TENTOU DETÊ-LA, ELA ENROSCOU-SE AO REDOR DE SEU CORPO DE PEDRA, ESMAGANDO-O ATÉ ELE SE DESFAZER EM UMA CHUVA DE FRAGMENTOS.

ALTEA FOI ATINGIDA POR UMA ONDA DE CIPÓS, SENDO ARREMESSADA PARA LONGE.

— ALTEA! — GRITOU CÁLIA, DESVIANDO POR UM TRIZ DE UMA LANÇA QUE QUASE A PARTIRA AO MEIO.

A AMIGA ESTAVA CAÍDA, MAS VIVA.

CÁLIA GALOPOU ATÉ ELA, PUXANDO-A PARA A GARUPA DO LOBO.

ENTÃO, FITOU A CRIATURA.

SABIA QUE NÃO BASTAVA FUGIR. AQUILO NÃO PARARIA. DESTRUIRIA TUDO: OUTRAS CIDADES, OUTRAS VIDAS.

SALTOU DO LOBO, PUXANDO A ÚLTIMA FLECHA QUE CARREGAVA.

UMA FLECHA FORJADA COM UMA LASCA DO MONTE OLIMPO, QUE SUA MÃE ROUBARA QUANDO JOVEM.

MIROU.

O CORAÇÃO DA CRIATURA — UMA MASSA PULSANTE DE SEIVA NEGRA — EXPOSTO.

INSPIROU.

E SOLTOU.

A FLECHA CORTOU O AR, SILENTE, CERTEIRA.

AO TOCAR A CRIATURA, A FLECHA EXPLODIU EM CHAMAS DOURADAS, QUE SE ESPALHARAM COMO RAÍZES DE LUZ, CONSUMINDO O MONSTRO DE DENTRO PARA FORA. ELE SOLTOU UM GRITO AGUDO QUE PARECEU ATRAVESSAR DIMENSÕES, E ENTÃO, FINALMENTE, DESABOU, QUEBRANDO-SE EM MILHÕES DE FRAGMENTOS QUE SE TRANSFORMARAM EM PÓ.

O CAMPO DE BATALHA SILENCIOU.

O EXÉRCITO DE MONSTROS, SEM SEU MESTRE, SE DISSOLVEU, ALGUNS FUGINDO, OUTROS SE DESFAZENDO EM NÉVOA.

CÁLIA, OFEGANTE, CAIU DE JOELHOS.

ALTEA SE APROXIMOU, MANCANDO, E SEGUROU SUA MÃO.

— VOCÊ CONSEGUIU.

MAS CÁLIA NÃO RESPONDEU.

OLHOU PARA O HORIZONTE.

O CÉU AGORA ESTAVA LIMPO.

OS TITÃS HAVIAM VOLTADO A DORMIR, SUAS FORMAS DESFEITAS.

O SANTUÁRIO ESTAVA EM RUÍNAS.

A VELHA AVÓ, SENTADA SOBRE A CARROÇA DESTRUÍDA, SOLTOU UMA RISADA SECA.

— AS CIDADES CAEM… OS MONSTROS TAMBÉM…, MAS O MUNDO SEGUE, SEMPRE SEGUE.

CÁLIA ERGUEU-SE, COLOCOU A ALJAVA VAZIA NAS COSTAS E PUXOU ALTEA COM ELA.

— E NÓS SEGUIMOS — DISSE, SEM EMOÇÃO.

MONTOU NOVAMENTE NO LOBO ALADO.

E PARTIRAM.

SEM OLHAR PARA TRÁS, SEM GLÓRIA, SEM FESTA.

APENAS… SEGUIRAM.