NUMA VILA ESCONDIDA ENTRE AS MONTANHAS E AS MATAS FECHADAS DO INTERIOR DE MINAS GERAIS, HAVIA UM FANTASMA QUE ARREPIAVA ATÉ OS MAIS VALENTES: ELE ERA CONHECIDO COMO O PÉ DE GARRAFA.

DIZIAM QUE ELE ERA UMA CRIATURA MISTERIOSA, QUE VIVIA NAS CAPOEIRAS E NOS GROTÕES MAIS ESCUROS DA FLORESTA. NINGUÉM JAMAIS TINHA VISTO DE VERDADE O PÉ DE GARRAFA, MAS SEUS GRITOS ESTRIDENTES, ORA ASSUSTADORES, ORA ESTRANHAMENTE FAMILIARES, ECOAVAM PELA MATA NAS NOITES MAIS ESCURAS, QUANDO A LUA SE ESCONDIA E AS ESTRELAS SE APAGAVAM.

— QUEM ENTRA NA MATA ATRÁS DESSE BICHO NUNCA MAIS SAI DO MESMO JEITO — DIZIA O VELHO JANUÁRIO, COM OS OLHOS ARREGALADOS, ENQUANTO ASSOPRAVA A FUMAÇA DO SEU PITO DE BARRO.

MIGUEL E SUA PRIMA LÚCIA SEMPRE OUVIAM ESSAS HISTÓRIAS, MEIO COM MEDO, MEIO COM VONTADE DE VER SE AQUILO ERA VERDADE. ELES TINHAM DOZE E TREZE ANOS E PASSAVAM TODAS AS FÉRIAS NA CASA DA AVÓ, BEM NA BEIRA DA MATA.

NAQUELA TARDE, O CÉU COMEÇOU A SE ENCHER DE NUVENS CARREGADAS, E O VENTO ASSOBIAVA COMO SE A PRÓPRIA MATA ESTIVESSE SUSSURRANDO SEGREDOS ANTIGOS.

— NÃO VÃO PRA MATA HOJE, OUVIRAM? — AVISOU A AVÓ, COM A VOZ FIRME. — NOITE DE TEMPO FECHADO É NOITE DO PÉ DE GARRAFA...

MIGUEL E LÚCIA SE ENTREOLHARAM, COM AQUELA EXPRESSÃO DE QUEM SABE QUE VAI FAZER JUSTAMENTE O CONTRÁRIO.

QUANDO ANOITECEU, ELES PEGARAM SUAS LANTERNAS, CALÇARAM AS BOTAS E, SEM FAZER BARULHO, SAÍRAM PELOS FUNDOS DA CASA, ENTRANDO NA TRILHA QUE SERPENTEAVA ENTRE AS ÁRVORES RETORCIDAS.

— VOCÊ ACHA QUE A GENTE VAI OUVIR O GRITO? — COCHICHOU LÚCIA, APERTANDO O BRAÇO DO PRIMO.

— SÓ SE A GENTE FOR BEM FUNDO — RESPONDEU MIGUEL, CHEIO DE CORAGEM, MAS COM O CORAÇÃO BATENDO TÃO FORTE QUE PARECIA QUE IA SAIR PELA BOCA.

A MATA ESTAVA ÚMIDA E FRIA, E A CADA PASSO ELES OUVIAM O ESTALO DE GALHOS QUEBRANDO SOB SEUS PÉS. DE REPENTE, UM SOM CORTOU O AR: UM GRITO AGUDO, ESTRANHO, QUE NÃO PARECIA DE NENHUM BICHO CONHECIDO.

— AAAAAAAAHHH!

OS DOIS SE ENTREOLHARAM, PARALISADOS.

— FOI ELE... — SUSSURROU LÚCIA, COM OS OLHOS ARREGALADOS.

E ENTÃO OUVIRAM DE NOVO, VINDO DE OUTRO LADO:

— AAAAAAHHH!

DEPOIS, MAIS UM, ATRÁS DELES.

— AI, MIGUEL, SÃO MUITOS! — GRITOU LÚCIA, COMEÇANDO A RECUAR.

MAS MIGUEL APONTOU PARA O CHÃO:

— OLHA!

NO MEIO DO BARRO, UM RASTRO PERFEITAMENTE REDONDO E PROFUNDO. PARECIA MESMO O FUNDO DE UMA GARRAFA ENFIADO NA TERRA.

— O RASTRO DO PÉ DE GARRAFA... — DISSE ELE, FASCINADO.

SEM PERCEBEREM, ESTAVAM CADA VEZ MAIS AFASTADOS DA TRILHA.

OS GRITOS COMEÇARAM A SE MULTIPLICAR, SURGINDO DE TODAS AS DIREÇÕES. A MATA PARECIA VIVA, GRITANDO, RINDO, CHAMANDO, CONFUNDINDO.

— PARA ONDE A GENTE VAI? — PERGUNTOU LÚCIA, GIRANDO EM CÍRCULOS, TENTANDO ACHAR O CAMINHO DE VOLTA.

MAS OS GRITOS NÃO DEIXAVAM. ELES VINHAM DA FRENTE, DE TRÁS, DA ESQUERDA, DA DIREITA, COMO SE O PÉ DE GARRAFA FOSSE MUITOS AO MESMO TEMPO.

A ESCURIDÃO FICOU AINDA MAIS DENSA QUANDO AS LANTERNAS COMEÇARAM A FALHAR.

— MIGUEL, TÔ COM MEDO... — DISSE LÚCIA, SEGURANDO O BRAÇO DO PRIMO COM FORÇA.

DE REPENTE, O SILÊNCIO. UM SILÊNCIO ABSOLUTO, CORTANTE.

E ENTÃO, UM NOVO SOM: PASSOS... PESADOS... ESMAGANDO FOLHAS E GALHOS.

DE DENTRO DA ESCURIDÃO, UM VULTO COMEÇOU A SURGIR... ERA ALTO, DISFORME, E CADA PASSO FAZIA O CHÃO TREMER LEVEMENTE, COMO SE ALGO MUITO PESADO ESTIVESSE CAMINHANDO. OS DOIS FICARAM PARALISADOS, RESPIRANDO O MAIS BAIXO QUE CONSEGUIAM, TENTANDO ACREDITAR QUE ERA APENAS UM ANIMAL QUALQUER. MAS ENTÃO, À LUZ FRACA DA LANTERNA QUE AINDA PISCAVA, MIGUEL VIU: MARCAS REDONDAS E PROFUNDAS NO SOLO, COMO SE ENORMES FUNDOS DE GARRAFA TIVESSEM SIDO CRAVADOS ALI.

O VULTO PAROU, E, DE REPENTE, SOLTOU UM GRITO ESTRIDENTE, MAIS ALTO E MAIS ASSUSTADOR DO QUE TODOS OS OUTROS. O SOM REVERBEROU ENTRE AS ÁRVORES E PARECEU SE MULTIPLICAR, ENCHENDO A MATA DE ECOS ENLOUQUECEDORES. LÚCIA TAPOU OS OUVIDOS E MIGUEL PUXOU-A PELA MÃO.

— CORRE! — ELE GRITOU, MAS MAL SABIA PARA ONDE.

ELES CORRERAM SEM DIREÇÃO, TROPEÇANDO EM RAÍZES E GALHOS, DESVIANDO DE CIPÓS QUE PENDIAM COMO SERPENTES DO ALTO DAS ÁRVORES. MAS, POR MAIS QUE CORRESSEM, OS GRITOS OS SEGUIAM, VINDOS DE TODOS OS LADOS, COMO SE O PRÓPRIO AR ESTIVESSE GRITANDO.

DE REPENTE, MIGUEL PAROU, PUXANDO LÚCIA PARA TRÁS DE UM TRONCO OCO. OS DOIS FICARAM AGACHADOS, OFEGANTES, TENTANDO SILENCIAR O PRÓPRIO MEDO.

ENTÃO OUVIRAM: PASSOS. PESADOS, RITMADOS, APROXIMANDO-SE LENTAMENTE. A CADA PASSO, OUTRO RASTRO PROFUNDO E CIRCULAR SE FORMAVA NA TERRA MOLHADA.

A LANTERNA FALHOU DE VEZ, DEIXANDO-OS ENVOLTOS EM COMPLETA ESCURIDÃO.

MIGUEL TATEOU O BOLSO, TENTANDO ENCONTRAR O FÓSFORO QUE SEMPRE CARREGAVA PARA EMERGÊNCIAS, MAS SUAS MÃOS TREMIAM TANTO QUE DEIXOU A CAIXA CAIR NO CHÃO. O SOM DO PEQUENO ESTOJO DE MADEIRA BATENDO NUMA RAIZ PARECEU TÃO ALTO QUANTO UMA PEDRADA.

OS PASSOS PARARAM.

O SILÊNCIO SE FEZ DE NOVO.

LÚCIA PRENDEU A RESPIRAÇÃO, AGARRADA AO BRAÇO DO PRIMO.

E ENTÃO, BEM AO LADO DELES, OUVIRAM UMA RESPIRAÇÃO FORTE, PROFUNDA, COMO SE UMA CRIATURA ENORME ESTIVESSE FAREJANDO O AR.

O CORAÇÃO DOS DOIS PARECIA PRESTES A EXPLODIR.

MAS, SEM QUE SOUBESSEM COMO, O VULTO SE AFASTOU. OS PASSOS PESADOS COMEÇARAM A SE PERDER PARA ALÉM DAS ÁRVORES, ATÉ SUMIREM POR COMPLETO.

ELES NÃO SABIAM SE TINHAM SIDO POUPADOS OU SE AQUILO FAZIA PARTE DE UM JOGO.

POR UM MOMENTO, FICARAM ALI, IMÓVEIS, ATÉ QUE MIGUEL SE LEVANTOU DEVAGAR, AJUDANDO LÚCIA A FAZER O MESMO.

— ACHO QUE ELE FOI EMBORA... — SUSSURROU MIGUEL.

MAS, DE REPENTE, À SUA FRENTE, NO CHÃO, VIRAM OUTRA SEQUÊNCIA DE RASTROS REDONDOS, COMO SE O PÉ DE GARRAFA TIVESSE PASSADO ALI HÁ POUCOS SEGUNDOS, EM SILÊNCIO ABSOLUTO.

SEM SABER PARA ONDE IR, COMEÇARAM A ANDAR CUIDADOSAMENTE, PROCURANDO ALGUMA REFERÊNCIA QUE OS LEVASSE DE VOLTA PARA A TRILHA. MAS A MATA PARECIA TER MUDADO COMPLETAMENTE, COMO SE OS CAMINHOS CONHECIDOS TIVESSEM SE DESFEITO.

ANDARAM POR UM BOM TEMPO, ATÉ QUE AVISTARAM UMA PEQUENA CLAREIRA ONDE A LUZ FRACA DA LUA, QUE ENFIM CONSEGUIA FURAR ALGUMAS NUVENS, ILUMINAVA O CHÃO.

E ALI, NO MEIO DA CLAREIRA, HAVIA UMA COISA QUE FEZ OS DOIS ESTREMECEREM.

UM AMONTOADO DE GARRAFAS QUEBRADAS, DE DIFERENTES TAMANHOS, TODAS ESPALHADAS COMO SE ALGUÉM AS TIVESSE ARREMESSADO ALI. ALGUMAS ESTAVAM ENTERRADAS PARCIALMENTE NO SOLO, OUTRAS PENDURADAS NOS GALHOS BAIXOS, BALANÇANDO AO SABOR DO VENTO E TILINTANDO SUAVEMENTE, COMO SINOS.

— O QUE É ISSO? — PERGUNTOU LÚCIA, COM A VOZ TRÊMULA.

MIGUEL OLHOU AO REDOR, SENTINDO UM FRIO ESTRANHO SUBIR PELA ESPINHA.

E ENTÃO SE LEMBROU DO QUE O VELHO JANUÁRIO DIZIA:

— O PÉ DE GARRAFA ATRAI OS CAÇADORES COM SEUS GRITOS, E, QUANDO ELES CHEGAM PERTO, DEIXA PARA TRÁS UM RASTRO DE GARRAFAS QUEBRADAS... COMO AVISO, OU COMO ARMADILHA...

O SOM DO TILINTAR DAS GARRAFAS SE INTENSIFICOU, COMO SE O VENTO GANHASSE FORÇA DE REPENTE. E ENTÃO, MAIS UMA VEZ, O GRITO ENSURDECEDOR:

— AAAAAAHHHHH!

OS DOIS SE VIRARAM, PRONTOS PARA CORRER, MAS MAL DERAM UM PASSO QUANDO PERCEBERAM QUE ESTAVAM CERCADOS. AO REDOR DA CLAREIRA, DEZENAS DE MARCAS CIRCULARES NO CHÃO, PROFUNDAS, FRESCAS.

LÚCIA COMEÇOU A CHORAR, E MIGUEL A ABRAÇOU, PROCURANDO UMA SAÍDA, QUALQUER DIREÇÃO QUE NÃO ESTIVESSE TOMADA PELOS RASTROS.

DE REPENTE, A MATA À SUA FRENTE SE ABRIU, COMO SE AS ÁRVORES SE AFASTASSEM SOZINHAS, REVELANDO UMA TRILHA ESTREITA ILUMINADA PELA LUA.

— VAMOS! — GRITOU MIGUEL, PUXANDO A PRIMA.

CORRERAM PELA TRILHA, SENTINDO OS GRITOS SE AFASTAREM POUCO A POUCO. O VENTO QUE ANTES OS EMPURRAVA, AGORA PARECIA ABRIR CAMINHO.

DEPOIS DE MINUTOS CORRENDO SEM PARAR, TROPEÇARAM E ROLARAM BARRANCO ABAIXO, ATÉ CAÍREM NUMA PARTE DA MATA QUE LHES ERA FAMILIAR: A TRILHA ATRÁS DA CASA DA AVÓ.

OFEGANTES, COM OS JOELHOS RALADOS E AS ROUPAS RASGADAS, LEVANTARAM-SE E OLHARAM PARA TRÁS. A MATA ESTAVA SILENCIOSA, SERENA, COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO.

FORAM CORRENDO PARA CASA E ENTRARAM BATENDO A PORTA COM FORÇA.

A AVÓ OS ESPERAVA SENTADA NA CADEIRA DE BALANÇO, COMO SE SOUBESSE QUE ELES DESOBEDECERIAM.

— VOCÊS FORAM, NÃO FORAM? — PERGUNTOU ELA, OLHANDO COM OLHOS SEVEROS, MAS CHEIOS DE ALÍVIO.

OS DOIS ASSENTIRAM, AINDA SEM FÔLEGO PARA FALAR.

— VIRAM ELE?

MIGUEL HESITOU, ENTÃO RESPONDEU:

— NÃO VIMOS…, MAS OUVIMOS… E VIMOS OS RASTROS. E AS GARRAFAS...

A AVÓ FECHOU OS OLHOS E FEZ UM SINAL DE PROTEÇÃO NO AR.

— AGORA VOCÊS SABEM. O PÉ DE GARRAFA NÃO GOSTA QUE INVADAM SUA MATA. ELE CONFUNDE, DESORIENTA, ESPANTA. SÓ QUER FICAR QUIETO NO SEU CANTO. QUEM ENTRA, SAI MUDADO… SE CONSEGUIR SAIR.

OS DOIS FICARAM EM SILÊNCIO, AINDA OUVINDO, NA LEMBRANÇA, AQUELES GRITOS ECOANDO DENTRO DA CABEÇA.

NAQUELA NOITE, MAL CONSEGUIRAM DORMIR, PENSANDO NO VULTO, NOS RASTROS, E NA CLAREIRA CHEIA DE GARRAFAS QUEBRADAS.

NO DIA SEGUINTE, QUANDO O SOL JÁ BRILHAVA FORTE, RESOLVERAM VOLTAR ATÉ A ENTRADA DA MATA, SÓ PARA VER.

FORAM DEVAGAR, JUNTOS, ATÉ ONDE A TRILHA COMEÇAVA.

MAS, PARA A SURPRESA DELES, NÃO HAVIA RASTROS, NEM SINAIS DE PEGADAS CIRCULARES, NEM CLAREIRA COM GARRAFAS QUEBRADAS. NADA. A MATA ESTAVA LIMPA, COMO SE NUNCA TIVESSE SIDO PISADA POR NINGUÉM.

SÓ UMA COISA OS FEZ ESTREMECER.

ALI, NA BEIRA DA TRILHA, BEM ONDE O BARRO ERA MAIS MACIO, HAVIA UMA MARCA REDONDA E PROFUNDA, DO TAMANHO EXATO DE UM FUNDO DE GARRAFA.

MIGUEL E LÚCIA SE OLHARAM E ENTENDERAM: ELE SABIA QUE ELES TINHAM VOLTADO.

E, DE LONGE, MUITO LONGE, UM GRITO, QUASE IMPERCEPTÍVEL, ECOOU PELA MATA:

— AAAAAAHHHHHH...

ELES DERAM MEIA-VOLTA E CORRERAM DE VOLTA PRA CASA, PROMETENDO NUNCA MAIS DESAFIAR O QUE MORA NA MATA.

MAS, NO FUNDO, SABIAM QUE AQUELA HISTÓRIA NUNCA TERMINARIA DE VERDADE.

PORQUE, NA MATA, O PÉ DE GARRAFA SEMPRE ESTAVA À ESPREITA, DEIXANDO SEUS RASTROS CIRCULARES E SEUS GRITOS QUE ENLOUQUECIAM QUEM TENTAVA SEGUI-LO.