NAS MONTANHAS DE VELEBIT, ONDE AS NUVENS SE DEITAM NAS ENCOSTAS E O TEMPO CAMINHA MAIS DEVAGAR, VIVIA UMA PRINCESA MÁGICA CHAMADA JELENA. MAS ELA NÃO ERA UMA PRINCESA COMUM. NÃO VESTIA COROAS, NÃO TINHA UM TRONO, NEM ESPERAVA POR CAVALEIROS OU FESTAS NO SALÃO. ELA CAMINHAVA DESCALÇA PELAS TRILHAS DE MUSGO, BEBIA ÁGUA DIRETAMENTE DAS NASCENTES E DORMIA SOB AS ESTRELAS, COM OS LOBOS COMO GUARDIÕES E AS CORUJAS COMO SENTINELAS.

JELENA TINHA A ALMA DA MONTANHA. SEUS OLHOS PARECIAM CONTER A LUZ DAS MANHÃS DE NEBLINA, E SUA VOZ ERA COMO O SOM DISTANTE DE TROVÕES SUAVES ANUNCIANDO A CHUVA DE VERÃO. DIZIAM QUE ELA NASCERA DO ENCONTRO DE UM RAIO COM A ÁGUA DE UM LAGO, E QUE O VENTO FORA SEU PRIMEIRO BRINQUEDO. QUANDO FALAVA, AS FOLHAS ESTREMECIAM LEVEMENTE, E QUANDO SORRIA, ATÉ AS PEDRAS PARECIAM AQUECER.

ELA ERA A GUARDIÃ DE TUDO O QUE ERA VIVO NAQUELE LUGAR: DAS PLANTAS RASTEIRAS ÀS ÁGUIAS DOURADAS, DOS CERVOS QUE PASTAVAM AO AMANHECER ÀS SALAMANDRAS ESCONDIDAS SOB TRONCOS MOLHADOS. MAS, ACIMA DE TUDO, JELENA ERA A GUARDIÃ DO EQUILÍBRIO — AQUELA QUE SABIA QUANDO TOCAR, QUANDO DEIXAR PASSAR E QUANDO DESAPARECER COMO BRUMA.

NUMA MANHÃ DE CÉU METÁLICO E VENTO INQUIETO, JELENA OUVIU UM SOM QUE NÃO ERA NATURAL — O RITMO SECO E INSISTENTE DE UM MACHADO CORTANDO MADEIRA. ELA SE ERGUEU DA PEDRA ONDE ESCUTAVA O CANTO DAS CIGARRAS E DEIXOU-SE LEVAR PELO VENTO ATÉ A ORIGEM DO SOM. NO MEIO DA FLORESTA ALTA, DIANTE DA VELHA MÃE — UMA ÁRVORE SAGRADA QUE MAIS PARECIA UMA TORRE DE MADEIRA VIVA — ESTAVA UM HOMEM. SUAS MÃOS ERAM ÁSPERAS E FORTES, SEUS OLHOS CLAROS E CONCENTRADOS. ELE SEGURAVA UM MACHADO JÁ ENCOSTADO NA BASE DA ÁRVORE. AO REDOR, ESQUILOS OBSERVAVAM EM SILÊNCIO E PÁSSAROS SE CALAVAM, COMO SE A PRÓPRIA FLORESTA PRENDESSE A RESPIRAÇÃO.

JELENA TRANSFORMOU-SE NUM SOPRO E APARECEU AO LADO DELE, MATERIALIZANDO-SE COMO SE TIVESSE SAÍDO DO TRONCO DA ÁRVORE.

— NÃO ÉS DAQUI — DISSE ELA, SUAVEMENTE.

O LENHADOR DEU UM PASSO PARA TRÁS, SURPRESO COM A PRESENÇA DA MULHER. SEU OLHAR NÃO ERA DE MEDO, MAS DE CONFUSÃO.

— NÃO... VIM DAS PLANÍCIES. PRECISO CONSTRUIR UM ABRIGO. ME DISSERAM QUE ESTA FLORESTA ERA RICA E GENEROSA.

— É GENEROSA, SIM — DISSE JELENA —, MAS SABE QUANDO ESTÁ SENDO FERIDA. ESTA ÁRVORE ESTÁ VIVA HÁ MAIS TEMPO DO QUE TUA ALDEIA. NÃO É MADEIRA COMUM. O QUE PROCURAS PODE SER ENCONTRADO SEM DOR.

ELE BAIXOU OS OLHOS. PELA PRIMEIRA VEZ, REPAROU NAS RAÍZES ESPESSAS QUE SAÍAM COMO BRAÇOS DA BASE DA ÁRVORE, NOS LÍQUENS QUE FORMAVAM DESENHOS COMO SE CONTASSEM HISTÓRIAS, NAS PEQUENAS FLORES ROXAS QUE NASCIAM EM SUAS SOMBRAS.

JELENA NÃO O CONDENOU. APENAS GIROU NOS CALCANHARES E FEZ UM GESTO PARA QUE A SEGUISSE. E ELE FOI. PASSARAM POR RIACHOS ESCONDIDOS, POR CAMPOS DE FLORES ALTAS COMO CRIANÇAS PEQUENAS, POR TRILHAS COBERTAS DE PINHAS E COGUMELOS QUE MUDAVAM DE COR AO ENTARDECER. ELA O LEVOU ATÉ UM VALE ONDE ÁRVORES CAÍDAS DESCANSAVAM, SECAS PELO TEMPO, ENTREGUES AO CICLO NATURAL.

ENQUANTO ELE SERRAVA E CORTAVA, JELENA SE SE SENTAVA EM UMA PEDRA PRÓXIMA E CONVERSAVA COM OS ANIMAIS. ÀS VEZES ELA CANTAVA, E A MADEIRA PARECIA PARTIR-SE COM MAIS FACILIDADE. O LENHADOR NÃO PERGUNTAVA QUEM ELA ERA. SABIA QUE ERA MELHOR NÃO SABER COM PALAVRAS AQUILO QUE OS OLHOS JÁ LHE DIZIAM.

QUANDO O ABRIGO FICOU PRONTO, JELENA DESAPARECEU POR ALGUNS DIAS. O LENHADOR, AGORA INSTALADO, COMEÇAVA A EXPLORAR A FLORESTA COM MAIS CUIDADO. PLANTAVA PEQUENAS SEMENTES ONDE PASSAVA. APRENDERA COM ELA QUE TUDO QUE SE TIRA DEVE SER DEVOLVIDO DE ALGUMA FORMA. E MESMO SEM SABER SE VOLTARIA A VÊ-LA, FALAVA COM O VENTO, COMO SE ELA PUDESSE ESCUTAR.

MAS JELENA VOLTOU. ELA SEMPRE VOLTAVA QUANDO O CORAÇÃO DAS MONTANHAS CHAMAVA. NUMA NOITE DE LUA AZUL, REAPARECEU DIANTE DO ABRIGO. O LENHADOR A RECEBEU COM UM OLHAR SEM PALAVRAS. SENTARAM-SE LADO A LADO EM SILÊNCIO. ACIMA DELES, AS ESTRELAS DANÇAVAM LENTAMENTE.

— HÁ MAIS HOMENS VINDO DA PLANÍCIE — DISSE ELA, APÓS UM TEMPO. — ELES NÃO VEEM O QUE TU VISTE.

— POSSO FALAR COM ELES.

— ÀS VEZES NÃO BASTA FALAR.

ELA LEVOU A MÃO AO CHÃO E DE LÁ RETIROU UMA PEQUENA PEDRA. DENTRO DELA, ALGO BRILHAVA. ENTREGOU-LHE SEM EXPLICAÇÃO.

— ISTO? — PERGUNTOU ELE.

— É O QUE AINDA NÃO ENTENDES. GUARDA. UM DIA SABERÁS O QUE FAZER COM ELA.

NO DIA SEGUINTE, JELENA SE FOI DE NOVO. E OS HOMENS VIERAM. MUITOS. ALGUNS COM MACHADOS. OUTROS COM CORRENTES. TROUXERAM FOGO E BARULHO. O LENHADOR TENTOU IMPEDI-LOS. FALOU DA FLORESTA, DA VELHA MÃE, DA MULHER DE OLHOS DE NUVEM. RIRAM DELE.

MAS QUANDO CHEGARAM À CLAREIRA SAGRADA, O VENTO FICOU ESTRANHO. UIVAVA EM DIREÇÕES CONTRÁRIAS. AS FOLHAS GIRAVAM NO AR COMO SE TENTASSEM FUGIR. E ENTÃO, O CÉU ESCURECEU EM PLENO MEIO-DIA.

DO MEIO DA TEMPESTADE, JELENA APARECEU. SEU CORPO PARECIA FEITO DE NUVEM E RAIO. NÃO GRITOU. NÃO ATACOU. APENAS FICOU ALI, OLHANDO. E UM POR UM, OS INVASORES SENTIRAM ALGO QUE NÃO SABIAM NOMEAR. MEDO, TALVEZ. OU RESPEITO. OU CULPA.

UM DELES LARGOU O MACHADO. DEPOIS OUTRO. E OUTRO. QUANDO TUDO TERMINOU, NÃO SOBROU NINGUÉM QUE QUISESSE FERIR A MONTANHA. OS HOMENS VOLTARAM PARA AS PLANÍCIES, LEVANDO EM SUAS LEMBRANÇAS O OLHAR DE JELENA — QUE ERA AO MESMO TEMPO BRANDO E FIRME, COMO A TERRA QUE SUSTENTA E A PEDRA QUE RESISTE.

O LENHADOR PERMANECEU. TORNOU-SE UM NOME SUSSURRADO PELOS TRILHOS DA FLORESTA. CRIANÇAS DE OUTRAS ALDEIAS DIZIAM QUE, SE VOCÊ CAMINHASSE EM SILÊNCIO E OLHASSE COM O CORAÇÃO, ELE APARECERIA PARA CONTAR AS HISTÓRIAS DA MULHER QUE SOPRAVA ENTRE AS ÁRVORES. E EMBORA ELE TENHA ENVELHECIDO E DESAPARECIDO NUMA NOITE FRIA, SEU ABRIGO AINDA ESTÁ LÁ, ENVOLTO EM RAÍZES E MUSGO, COM UMA PEDRA BRILHANTE GUARDADA SOB O ASSOALHO.

E JELENA AINDA CAMINHA PELAS ENCOSTAS DE VELEBIT. ÀS VEZES EM FORMA DE VENTO, ÀS VEZES COMO UMA SILHUETA AO LONGE ENTRE AS ÁRVORES. NUNCA NO MESMO LUGAR DUAS VEZES, MAS SEMPRE ONDE É MAIS PRECISA. NUNCA PARA DAR LIÇÕES, APENAS PARA ESTAR, COMO ESTÃO AS ESTRELAS — SILENCIOSAS, MAS SEMPRE PRESENTES.