HAVIA UMA VILA ESCONDIDA ENTRE MONTANHAS E FLORESTAS DENSAS CHAMADA LUARVIVO. ERA UM LUGAR ONDE AS LENDAS CAMINHAVAM DE MÃOS DADAS COM A ROTINA, E AS CRIANÇAS CRESCIAM OUVINDO HISTÓRIAS DE CRIATURAS MÁGICAS, REINOS DISTANTES E CORAÇÕES CORAJOSOS. ENTRE ESSAS CRIANÇAS, VIVIA UMA MENINA CHAMADA ELINA. ELINA TINHA DOZE ANOS, CABELOS CASTANHOS ENCARACOLADOS E OLHOS QUE MUDAVAM DE COR CONFORME O HUMOR. FILHA DE UMA HERBORISTA E DE UM FERREIRO, ELA CONHECIA TANTO AS PROPRIEDADES DAS FLORES QUANTO O PESO DE UM MARTELO DE FERRO. MAS O QUE MAIS ENCANTAVA ELINA ERAM OS CÉUS. PASSAVA HORAS DEITADA NA COLINA DOS VENTOS, OBSERVANDO AS NUVENS E OS PÁSSAROS. SEU SONHO ERA VOAR. NÃO EM BALÕES OU MONTARIAS, MAS COM ASAS. SENTIR O VENTO CORTANDO O ROSTO E VER O MUNDO DE CIMA, COMO UM FALCÃO. CERTA NOITE, ENQUANTO CAMINHAVA PELA FLORESTA PARA COLHER FOLHAS DE MIRTILO PARA A MÃE, ELINA OUVIU UM SOM DIFERENTE. UM GRITO AGUDO, COMO O DE UM PÁSSARO, MAS MAIS FORTE. SEGUIU O SOM, E O QUE ENCONTROU MUDOU SUA VIDA PARA SEMPRE. NUM CLARO DA FLORESTA, REPOUSAVA UMA CRIATURA DE OURO RELUZENTE, COM ASAS MAJESTOSAS FERIDAS POR ESPINHOS NEGROS. ERA UM FALCÃO, MAS NÃO UM COMUM. ERA GRANDE COMO UM VEADO, COM OLHOS QUE BRILHAVAM COMO ESTRELAS. ELINA SE APROXIMOU, ENCANTADA E TEMEROSA. — VOCÊ ESTÁ FERIDO — SUSSURROU. O FALCÃO, MESMO FRACO, FITOU A MENINA COM INTENÇÃO E SERENIDADE. HAVIA ALGO DE ANTIGO E PODEROSO NELE. ELINA, SEM PENSAR MUITO, RETIROU OS ESPINHOS COM CUIDADO E TRATOU AS FERIDAS COM AS ERVAS QUE CARREGAVA. NO DIA SEGUINTE, O FALCÃO AINDA ESTAVA LÁ. E NO OUTRO. ELINA O VISITAVA TODOS OS DIAS, LEVANDO COMIDA, CUIDANDO DELE, CANTANDO PARA ALIVIAR SUA DOR. AOS POUCOS, ELE SE RECUPERAVA. ATÉ QUE UM DIA, FALOU. — ELINA, FILHA DO VENTO E DA FORJA, POR QUE ME AJUDA? A MENINA FICOU SEM FÔLEGO. UM FALCÃO FALANTE? SERIA UM FEITIÇO? UM SONHO? — PORQUE VOCÊ PRECISAVA. E PORQUE VOCÊ É LINDO. O FALCÃO RIU, UM SOM PROFUNDO E VIBRANTE. — SOU AURAL, GUARDIÃO DOS VENTOS DO NORTE. FUI CAÇADO POR AQUELES QUE QUEREM DOMINAR OS CÉUS. MAS TEU CORAÇÃO PURO ME DEVOLVEU A VIDA. NAQUELA NOITE, AURAL CONTOU A ELINA SOBRE A ORDEM DO VÉU SOMBRIO, UM GRUPO DE FEITICEIROS QUE BUSCAVAM APRISIONAR OS SERES MÁGICOS PARA USÁ-LOS COMO ARMAS. AURAL FORA EMBOSCADO ENQUANTO PROTEGIA OS CUMES NEVADOS. — ELES VÃO VOLTAR. E SE CONSEGUIREM ME CAPTURAR NOVAMENTE, DOMINARÃO OS VENTOS, TRARÃO TEMPESTADES E DESTRUIÇÃO. ELINA NÃO PENSOU DUAS VEZES. — EU VOU TE AJUDAR. VAMOS DETÊ-LOS. A PARTIR DALI, INICIOU-SE UMA JORNADA. AURAL OFERECEU A ELINA UM LAÇO MÁGICO: UMA PENA DOURADA QUE, COLOCADA NO CABELO, PERMITIA QUE ELA VOASSE EM SUAS COSTAS. JUNTOS, CRUZARAM MONTANHAS, FLORESTAS E RIOS EM BUSCA DOS OUTROS GUARDIÕES ELEMENTARES: IGNYS, O TIGRE DE FOGO; LUMEA, A SERPENTE DA LUZ; E BORAK, O URSO DAS ROCHAS. CADA GUARDIÃO TINHA SIDO CORROMPIDO OU CAPTURADO PELA ORDEM. ELINA, COM CORAGEM E COMPAIXÃO, ENFRENTOU ARMADILHAS, ILUSÕES E BATALHAS. MAS SEMPRE COM AURAL AO SEU LADO, GUIANDO E PROTEGENDO. IGNYS FORA ENFEITIÇADO POR UMA CORRENTE DE GELO. ELINA A QUEBROU USANDO UMA LÂMINA FORJADA POR SEU PAI E AQUECIDA COM BRASAS DE UMA FÊNEC ENCANTADA. LUMEA ESTAVA APRISIONADA EM UM ESPELHO. ELINA CANTOU UMA CANÇÃO ENSINADA POR SUA MÃE, QUE QUEBROU O FEITIÇO E LIBERTOU A SERPENTE DE LUZ. BORAK DORMIA EM UM SONO ENFEITIÇADO NO CORAÇÃO DE UMA MONTANHA. ELINA ESCALOU SOZINHA E DEIXOU CAIR UMA LÁGRIMA SOBRE A PEDRA, ACORDANDO-O. COM TODOS OS GUARDIÕES REUNIDOS, PARTIRAM PARA O CONFRONTO FINAL CONTRA A ORDEM DO VÉU SOMBRIO. A BATALHA ACONTECEU NOS CÉUS ACIMA DE LUARVIVO. ELINA, MONTADA EM AURAL, VOAVA ENTRE RELÂMPAGOS E LANÇAS DE SOMBRA. GRITAVA PALAVRAS DE CORAGEM, GUIANDO OS GUARDIÕES E OS HABITANTES DA VILA, QUE SE UNIRAM PARA DEFENDER SUA LIBERDADE. NO AUGE DA BATALHA, ELINA ENFRENTOU O LÍDER DA ORDEM, UM FEITICEIRO CHAMADO MALGRIN. ELE OFERECEU PODER, VOO ETERNO, REINOS A SEUS PÉS. MAS ELA RECUSOU. — EU QUERO VOAR, SIM. MAS COM CORAGEM, NÃO COM PRISÕES. COM UM GOLPE DE LUZ E VERDADE, ELINA E OS GUARDIÕES DERROTARAM A ORDEM. OS VENTOS FORAM LIBERTOS, OS CÉUS LIMPOS. QUANDO TUDO TERMINOU, AURAL POUSOU COM ELINA NA COLINA DOS VENTOS. — AGORA VOCÊ PODE VOAR SEMPRE QUE QUISER — DISSE O FALCÃO. — MAS MAIS IMPORTANTE: VOCÊ DEU ASAS AO MUNDO. ELINA SORRIU. SEUS OLHOS BRILHAVAM COM AS CORES DO ENTARDECER.

A PRIMAVERA SEGUINTE CHEGOU CEDO A LUARVIVO. AS NEVES DERRETERAM COM MAIS DOÇURA, OS RIOS CANTAVAM MAIS ALTO, E ATÉ AS FLORES PARECIAM TER APRENDIDO A DANÇAR COM O VENTO. A HISTÓRIA DE ELINA E DOS GUARDIÕES SE ESPALHOU ALÉM DAS MONTANHAS, ATRAVESSANDO ALDEIAS E REINOS COMO UMA BRISA CHEIA DE ESPERANÇA.

MAS NEM TODOS OS ECOS TRAZIAM APENAS ADMIRAÇÃO.

CERTA TARDE, ENQUANTO ELINA COLHIA FLORES-DOS-VENTOS COM SUA MÃE, UM MENSAGEIRO EM UM CORCEL PRATEADO APARECEU NA TRILHA DA VILA. TRAZIA UM PERGAMINHO SELADO COM CERA AZUL, SÍMBOLO DA CONVERGÊNCIA DOS ALTOS REINOS, UM CONSELHO ANCESTRAL DE MAGIA E EQUILÍBRIO. O BILHETE ERA BREVE:

“ÀQUELA QUE DESPERTOU OS VENTOS E LIBERTOU OS GUARDIÕES, CONVOCAMOS PARA O CÍRCULO DAS ESTAÇÕES. UM NOVO DESEQUILÍBRIO SURGE. TUA PRESENÇA É URGENTE. — ALTA-MAGA ESLARIËN.”

ELINA LEU EM SILÊNCIO. SEU CORAÇÃO, QUE ATÉ ENTÃO DESCANSAVA EM PAZ, VOLTOU A PULSAR COM O CHAMADO DA AVENTURA. AURAL, QUE VOAVA PRÓXIMO DALI, POUSOU SILENCIOSAMENTE AO SEU LADO.

— A CONVERGÊNCIA NÃO CONVOCA SEM MOTIVO — DISSE ELE. — ALGO SE MOVE ENTRE OS MUNDOS.

ELINA APERTOU A PENA DOURADA EM SEU CABELO E OLHOU PARA AS NUVENS.

— ENTÃO VAMOS.

O CÍRCULO DAS ESTAÇÕES NÃO ERA UM LUGAR, MAS UM MOMENTO. UM ANTIGO RITUAL REALIZADO APENAS QUANDO OS CICLOS DA MAGIA ERAM AMEAÇADOS. AURAL LEVOU ELINA ATÉ UM PLATÔ FLUTUANTE ACIMA DAS CORDILHEIRAS DOS QUATRO VENTOS. LÁ, ELA ENCONTROU OS OUTROS GUARDIÕES — IGNYS, LUMEA E BORAK — JÁ ESPERANDO EM SEUS TRONOS DE ELEMENTO. NO CENTRO, UMA CHAMA SUSPENSA GIRAVA ENTRE OS QUATRO: ERA A CHAMA DO RITMO, O CORAÇÃO DOS CICLOS NATURAIS.

MAS A CHAMA TREMIA.

A ALTA-MAGA ESLARIËN, UMA MULHER DE PELE DE MÁRMORE E CABELOS COMO GALHOS EM FLOR, EXPLICOU:
— A ORDEM DO VÉU SOMBRIO FOI APENAS O INÍCIO. AO APRISIONAREM OS GUARDIÕES, RASGARAM OS VÉUS ENTRE OS REINOS. AGORA... ALGO VEM DE ALÉM.

BORAK, SEMPRE SILENCIOSO, RUGIU BAIXO:
— SENTI TREMORES VINDOS DO SUBSOLO. SONS QUE NÃO PERTENCEM A ESTE MUNDO.

LUMEA COMPLETOU, COM VOZ SIBILANTE:
— ECOS DE UM ANTIGO NOME ESQUECIDO: O VAZIO-MÃE.

ELINA SENTIU UM CALAFRIO PERCORRER A ESPINHA. NUNCA OUVIRA AQUELE NOME, MAS ALGO NELE ERA... ERRADAMENTE FAMILIAR.

— O QUE É ISSO? — ELA PERGUNTOU.

AURAL POUSOU UMA ASA SOBRE OS OMBROS DELA.

— É O QUE EXISTIA ANTES DA LUZ. ANTES DOS VENTOS. O VAZIO-MÃE É A AUSÊNCIA QUE ESPREITA QUANDO ESQUECEMOS QUEM SOMOS. E AGORA, ELE ESTÁ ACORDANDO.

PARA IMPEDIR A VINDA DO VAZIO-MÃE, ELINA TERIA QUE REALIZAR UM RITUAL PROIBIDO: ATRAVESSAR OS TRÊS VÉUS DO MUNDO — O VÉU DA MEMÓRIA, O VÉU DA DOR E O VÉU DA ESSÊNCIA — E COSTURAR O RASGO FEITO PELA ORDEM. ERA UMA TRAVESSIA SOLITÁRIA. NEM MESMO AURAL PODERIA SEGUI-LA ALÉM DO PRIMEIRO VÉU.

ANTES DE PARTIR, A ALTA-MAGA LHE DEU UMA BÚSSOLA DE CRISTAL.

— ELA NÃO APONTA PARA O NORTE, MAS PARA O TEU VERDADEIRO CENTRO. SE UM DIA SE PERDER, LEMBRE-SE: O QUE GUIA NÃO É O DESTINO, MAS O PORQUÊ.

E ASSIM, ELINA ATRAVESSOU O PRIMEIRO VÉU.

LÁ, ENFRENTOU MEMÓRIAS DISTORCIDAS: SUA MÃE ESQUECENDO SEU NOME, SEU PAI SE TORNANDO PEDRA, AURAL CAÍDO EM SILÊNCIO. MAS MESMO COM O CORAÇÃO EM PEDAÇOS, ELINA SEGUROU FIRME A PENA DOURADA. E LEMBROU-SE: “EU QUERO VOAR, MAS COM CORAGEM, NÃO COM PRISÕES.”

NO SEGUNDO VÉU, A DOR ERA REAL. FRIA. CORTANTE. SENTIU MEDO, CULPA, SOLIDÃO. E ENTÃO... COMPAIXÃO. POIS ALI, VIU O REFLEXO DO VAZIO-MÃE: UMA ENTIDADE ANTIGA, TRISTE, FAMINTA DE SENTIDO. ELINA NÃO A ENFRENTOU COM ARMAS. ESTENDEU A MÃO.

— VOCÊ TAMBÉM QUER SER LEMBRADA, NÃO É?

ALGO SE QUEBROU. OU TALVEZ SE REMENDOU.

NO TERCEIRO VÉU, ELA ENCONTROU A SI MESMA. NÃO COMO ERA, MAS COMO PODERIA TER SIDO. UMA ELINA SEM ASAS, SEM CORAGEM. APENAS SILÊNCIO. MAS A MENINA SORRIU. E ABRAÇOU AQUELA VERSÃO. PORQUE ATÉ ELA FAZIA PARTE DO TODO.

QUANDO ELINA RETORNOU AO MUNDO REAL, A CHAMA DO RITMO VOLTOU A DANÇAR. OS VENTOS SOPRARAM EM TODAS AS DIREÇÕES AO MESMO TEMPO, COMO UMA RISADA DA PRÓPRIA VIDA. O VAZIO RECUOU, NÃO DERROTADO, MAS COMPREENDIDO.

AURAL VOOU AO SEU ENCONTRO. SILENCIOSO. ORGULHOSO.

— VOCÊ NÃO É MAIS APENAS A MENINA QUE QUERIA VOAR — DISSE ELE. — AGORA VOCÊ É O VENTO QUE APRENDE A LEMBRAR.

E NAQUELA NOITE, SOBRE LUARVIVO, SOB UM CÉU ESTRELADO QUE JAMAIS PISCOU TÃO FORTE, ELINA VOOU SOZINHA PELA PRIMEIRA VEZ.