HÁ MUITO, MUITO TEMPO, ANTES QUE O MUNDO TIVESSE ESTRADAS DE PEDRA, PRÉDIOS ALTOS OU PONTES DE AÇO, A TERRA ERA JOVEM E REPLETA DE MAGIA. OS SERES HUMANOS VIVIAM EM PEQUENAS ALDEIAS, CERCADAS POR FLORESTAS DENSAS, RIOS CRISTALINOS E MONTANHAS QUE TOCAVAM AS NUVENS. NAQUELA ÉPOCA, DOIS ESPÍRITOS GIGANTESCOS VIGIAVAM O MUNDO: CAICAI, A SERPENTE DO MAR, E TEN TEN, A SERPENTE DA TERRA.

CAICAI VILU ERA SENHORA DOS OCEANOS, UMA SERPENTE DE ESCAMAS BRILHANTES COMO CONCHAS MOLHADAS E OLHOS TÃO PROFUNDOS QUANTO O ABISMO DO MAR. SEU CORPO ERA TÃO LONGO QUE PODIA SE ENROLAR AO REDOR DE UMA ILHA INTEIRA. CAICAI CONTROLAVA AS MARÉS, AS CHUVAS E TODAS AS CRIATURAS DO MAR. JÁ TEN TEN VILU ERA FEITA DE PEDRAS, RAÍZES E TERRA VIVA. SEUS OLHOS BRILHAVAM COMO CRISTAIS E POR ONDE PASSAVA BROTAVAM FLORESTAS E NASCIAM MONTANHAS. ELA PROTEGIA OS HUMANOS, OS ANIMAIS TERRESTRES E TODAS AS PLANTAS.

POR MUITOS SÉCULOS, AS DUAS SERPENTES VIVERAM EM EQUILÍBRIO. CAICAI MANTINHA OS MARES FÉRTEIS E TEN TEN FAZIA A TERRA FLORESCER. MAS O EQUILÍBRIO NÃO DURARIA PARA SEMPRE.

UM DIA, CAICAI, AO OLHAR PARA A COSTA, SENTIU CIÚMES. OS HUMANOS ESTAVAM CRESCENDO, CONSTRUINDO CASAS PRÓXIMAS AO MAR, CORTANDO ÁRVORES E PESCANDO MAIS DO QUE O NECESSÁRIO. ELA SENTIU-SE DESRESPEITADA, ESQUECIDA. EM SUA RAIVA, DECIDIU QUE A TERRA NÃO MERECIA MAIS EXISTIR.

“ELES NÃO ME TEMEM. NÃO HONRAM MINHA ÁGUA. ENTÃO DEIXAREI QUE SE AFOGUEM TODOS,” SIBILOU CAICAI, SUA VOZ ECOANDO COMO TROVÃO NOS CÉUS CINZENTOS.

ELA SE ERGUEU DAS PROFUNDEZAS DO OCEANO, TRAZENDO UMA TEMPESTADE COMO O MUNDO JAMAIS HAVIA VISTO. ONDAS DO TAMANHO DE MONTANHAS AVANÇARAM SOBRE AS ALDEIAS COSTEIRAS. O MAR RUGIA COMO UM ANIMAL ENFURECIDO, DEVORANDO TUDO EM SEU CAMINHO: CASAS, ÁRVORES, BARCOS, ANIMAIS E ATÉ PESSOAS.

OS HUMANOS CORRERAM, DESESPERADOS, MAS NÃO HAVIA PARA ONDE FUGIR. A ÁGUA AVANÇAVA RÁPIDO DEMAIS.

FOI ENTÃO QUE A TERRA TREMEU.

DO CORAÇÃO DAS MONTANHAS SURGIU TEN TEN. SEUS OLHOS BRILHAVAM COM TRISTEZA E FÚRIA. ELA AMAVA OS HUMANOS, APESAR DE SEUS ERROS. SABIA QUE AINDA HAVIA BONDADE NELES. E ACIMA DE TUDO, SABIA QUE CAICAI NÃO TINHA O DIREITO DE DESTRUIR A VIDA DAQUELA MANEIRA.

COM UM RUGIDO QUE FEZ OS CÉUS SE CALAREM, TEN TEN ERGUEU MONTANHAS DO CHÃO. ONDE ANTES HAVIA PLANÍCIES, SURGIRAM PICOS. ONDE HAVIA VALES, BROTARAM COLINAS. ELA PUXOU AS PESSOAS PARA O ALTO, SALVANDO-AS DA FÚRIA DAS ÁGUAS.

CAICAI, AO VER AS MONTANHAS SURGINDO, GRITOU:

— VOCÊ SEMPRE PROTEGE OS FRACOS, TEN TEN! ELES NUNCA APRENDERÃO SE FOREM POUPADOS!

— E VOCÊ SEMPRE QUER DESTRUIR O QUE NÃO ENTENDE, CAICAI! ELES PODEM MUDAR. EU ACREDITO NELES!

ASSIM COMEÇOU UMA BATALHA QUE DUROU DIAS, SEMANAS, TALVEZ MESES — NINGUÉM SABE AO CERTO. AS ONDAS VINHAM E TEN TEN ERGUIA A TERRA. O MAR TENTAVA AFOGAR, E A TERRA SALVAVA. CADA ATAQUE DE CAICAI FAZIA SURGIR NOVOS RIOS E LAGOS. CADA DEFESA DE TEN TEN CRIAVA MONTANHAS MAIS ALTAS.

AS PESSOAS ASSISTIAM, IMPOTENTES, ENQUANTO AS DUAS FORÇAS COLIDIAM. MUITOS CHORAVAM, OUTROS ORAVAM. HAVIA QUEM CULPASSE AS SERPENTES, MAS TAMBÉM HAVIA QUEM AS HONRASSE, LEVANDO OFERENDAS AOS PÉS DAS MONTANHAS E À BEIRA DO MAR.

NO MEIO DESSA GUERRA, UM MENINO CHAMADO AMARU E SUA IRMÃ MAIS NOVA, LINA, FUGIAM COM O PAI PELAS MONTANHAS RECÉM-CRIADAS. A MÃE DELES HAVIA SIDO LEVADA PELA ENCHENTE. MESMO CRIANÇAS, ELES SABIAM QUE O MUNDO ESTAVA MUDANDO PARA SEMPRE.

AMARU ERA CURIOSO E CORAJOSO. APESAR DO MEDO, NÃO CONSEGUIA DEIXAR DE OBSERVAR AS TRANSFORMAÇÕES DA NATUREZA. ELE VIU RIOS NASCENDO ONDE ANTES HAVIA CAMPO SECO. VIU AVES VOANDO PARA TERRAS DISTANTES, E ANIMAIS DAS FLORESTAS SUBINDO PARA OS PICOS. TUDO ESTAVA SE ADAPTANDO.

NA NOITE MAIS ESCURA, QUANDO TROVÕES RASGAVAM O CÉU E A TERRA TREMIA COMO SE FOSSE DESABAR, AMARU TEVE UM SONHO. NO SONHO, TEN TEN APARECEU A ELE EM FORMA DE UMA MULHER ALTA, COM CABELOS DE FOLHAS E OLHOS DE CRISTAL.

— AMARU, O EQUILÍBRIO ESTÁ ROMPIDO — DISSE ELA. — CAICAI NÃO VAI PARAR ATÉ TUDO ESTAR DEBAIXO D’ÁGUA. MAS VOCÊ PODE NOS AJUDAR.

— EU? EU SOU SÓ UM MENINO! — EXCLAMOU ELE.

— OS HOMENS CRIARAM O DESEQUILÍBRIO. OS HOMENS DEVEM TRAZER A HARMONIA DE VOLTA.

AMARU ACORDOU SUADO, MAS SENTIA QUE ALGO HAVIA MUDADO DENTRO DELE. ELE CONTOU O SONHO AO PAI, QUE APENAS BALANÇOU A CABEÇA, DIZENDO QUE ERA IMAGINAÇÃO. MAS LINA ACREDITOU.

NA MANHÃ SEGUINTE, COM A AJUDA DA IRMÃ, AMARU REUNIU CRIANÇAS DE OUTRAS FAMÍLIAS NAS MONTANHAS. ELAS COMEÇARAM A PLANTAR ÁRVORES ONDE PODIAM, A LIMPAR FONTES DE ÁGUA, A CUIDAR DOS ANIMAIS QUE SUBIAM AS COLINAS. ELAS DANÇAVAM E CANTAVAM PARA A TERRA, COMO FAZIAM OS ANTIGOS. ALGUNS ADULTOS COMEÇARAM A RIR, OUTROS OS SEGUIRAM.

TEN TEN SORRIU.

CAICAI, AO VER ISSO, ENFURECEU-SE AINDA MAIS. AS ONDAS CRESCERAM E OS VENTOS UIVARAM. MAS ALGO CURIOSO ACONTECEU. AS MONTANHAS COMEÇARAM A RESISTIR MELHOR. AS ÁGUAS JÁ NÃO SUBIAM TANTO. E CAICAI, PELA PRIMEIRA VEZ, SENTIU CANSAÇO.

ENTÃO, UMA NOITE, CAICAI APARECEU A AMARU EM UM SONHO. SEU CORPO ERA DE ÁGUA ESCURA, SEUS OLHOS, COMO PÉROLAS SOMBRIAS.

— VOCÊ SE ACHA ESPECIAL, MENINO? ELES CONTINUARÃO DESTRUINDO TUDO. ELES NÃO APRENDEM. JÁ VI ISSO ANTES.

AMARU, TREMENDO, RESPONDEU:

— TALVEZ. MAS SE NUNCA TIVEREM UMA CHANCE, NUNCA SABEREMOS. VOCÊ QUER JUSTIÇA, MAS O QUE FAZ É VINGANÇA.

CAICAI FICOU EM SILÊNCIO. NUNCA NINGUÉM HAVIA LHE DITO ISSO. PELA PRIMEIRA VEZ, HESITOU.

E ENTÃO, UMA COISA EXTRAORDINÁRIA ACONTECEU: CAICAI RECUOU. AS ONDAS PARARAM DE AVANÇAR. A CHUVA CESSOU. O CÉU CLAREOU.

AS DUAS SERPENTES, CANSADAS, OLHARAM-SE. TINHAM DESTRUÍDO MUITO, MAS TAMBÉM CRIADO UM MUNDO: MONTANHAS ONDE ANTES HAVIA PLANÍCIES, RIOS ONDE HAVIA FLORESTAS, LAGOS NO TOPO DE COLINAS.

TEN TEN OLHOU PARA A IRMÃ E DISSE:

— O MUNDO MUDOU. ELES MUDARAM. VAMOS VIGIAR JUNTOS, NÃO COMO INIMIGAS, MAS COMO GUARDIÃS.

CAICAI NADA RESPONDEU. MERGULHOU NO OCEANO E DESAPARECEU. MAS SUA PRESENÇA AINDA PODIA SER SENTIDA NAS MARÉS, NAS TEMPESTADES E NO SAL DO VENTO.

TEN TEN DEITOU-SE ENTRE AS MONTANHAS E ADORMECEU, TRANSFORMANDO-SE NA TERRA. DIZEM QUE ELA AINDA ESCUTA AQUELES QUE FALAM COM RESPEITO À NATUREZA.

AMARU CRESCEU E ENSINOU SEUS FILHOS A CUIDAREM DA TERRA E DO MAR. E A HISTÓRIA DAS DUAS SERPENTES FOI PASSADA DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO. NÃO COMO UM CONTO DE TERROR, MAS COMO UMA LIÇÃO.

PORQUE, MESMO DEPOIS DE TANTA DESTRUIÇÃO, O MUNDO SOBREVIVEU. E O EQUILÍBRIO FOI RESTAURADO — NÃO PELA FORÇA DE GIGANTES, MAS PELA ESPERANÇA DE UMA CRIANÇA QUE ACREDITOU QUE ERA POSSÍVEL MUDAR.

E ASSIM, SEMPRE QUE O MAR RUGE ALTO DEMAIS OU QUANDO A TERRA TREME SOB NOSSOS PÉS, OS MAIS VELHOS DIZEM QUE CAICAI E TEN TEN ESTÃO APENAS SE LEMBRANDO DE SUA LUTA... E NOS OBSERVANDO, PARA VER SE APRENDEMOS COM O PASSADO.